Indicado ao Oscar, um dos melhores e mais brutais filmes de 2024 acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

Indicado ao Oscar, um dos melhores e mais brutais filmes de 2024 acaba de estrear na Netflix

As atordoadoras cenas iniciais de “Matar um Tigre” dão mesmo a impressão de que o filme de Nisha Pahuja vai tratar da abominável prática do safári, expedição de senhores endinheirados da Europa e dos Estados Unidos que viajam a lugarejos exuberantes e remotos da Terra à procura de alguma coisa que aplaque seu vazio existencial, seu ímpeto de destruição, e de quebra reafirme para eles a masculinidade frágil que se despedaça a análise mais profunda.

Infelizmente, a besta metafórica do documentário de Pahuja refere-se também a homens inseguros e patéticos, mas que tem por alvo outra espécie, muito mais indefesa e que não inspira o zelo e a dor solidária de ambientalistas mundo afora, e até quem deveria tomar seu partido murcha num silêncio pusilânime e criminoso, sacando de argumentos algo cínicos, fundados num cômodo e absurdo relativismo cultural, um charco pseudocientífico onde cabem justificativas para uma barbárie cujo pendor natural é perpetuar-se pelos séculos, amaciada, quando for o caso, por providências grotescas — se não fossem ainda revoltantes.

Aos treze anos, Kiran, a personagem central da narrativa de Pahuja, indiana radicada em Toronto, no Canadá, é um fantasma. A diretora opta por não mencionar o verdadeiro nome da garota, vítima de perseguições e uma campanha difamatória, mas que não joga a toalha e segue sua luta e sua vida, por exemplo, arrumando-se com capricho para ir à escola. Seu pai, Ranjit, encarrega-se de colocar o espectador a par do drama da família e diz como Kiran foi violentada por três homens, incluindo um primo, na festa de casamento de amigos próximos no vilarejo onde moram, no norte da Índia.

Prontamente, chega-nos à memória o relato da brasileira Fernanda Santos, atacada por oito homens no Bihar, estado do nordeste da Índia, no começo do mês, e se conclui que ser mulher no país é uma temeridade, seja para as locais, seja para as turistas — com prejuízo maior, por óbvio, para estas, sem para onde correr e a quem apelar, agrilhoadas a uma cultura que normaliza a violência sexual que nem sempre degringola em feminicídio.

Na prática, os homens indianos estão autorizados a dispor dos corpos de vizinhas, parentes, colegas de trabalho e, claro, subordinadas sem serem incomodados, dando vazão à arcaica mentalidade de atribuir à mulher uma cidadania de segunda classe, uma licença para o livre exercício de sua condição de indivíduos, passível de cassação a qualquer momento. Pahuja informa que, na Índia, a cada vinte minutos, uma mulher sofre abusos e apenas uma em dez arrisca-se a denunciar.

Quando isso acontece, o estranhamento é tão avassalador que as famílias terminam se ajeitando por si sós, com matrimônios improvisados nos quais lava-se a honra da vítima e o estuprador tem a chance de reparar seu erro sustentando a ofendida e fazendo-a uma senhora respeitável diante da comunidade hipócrita em que os dois vivem, sem que nunca se avente a hipótese do generoso benfeitor dar suas escapadas uma segunda, uma terceira, uma décima vez. Lixo. Nojo.

Os longos catorze meses que o processo toma, rolando de um escaninho para o outro sem garantia alguma de que os três acusados, presos, sejam efetivamente condenados e cumpram toda a pena, fizeram com que Ranjit se questionasse a todo instante quanto à correção de sua atitude, dando de barato sua exaustão física, seu desalento, as ameaças de estrangulamento financeiro, de demissão sumária, de novas agressões.

Por muito pouco, a diretora — que deixou o lugar onde nasceu justamente por não conseguir vislumbrar sequer um tíbio feixe de luz no fim desse imenso túnel —não pôde finalizar as últimas tomadas de seu filme. Cinco anos depois, Kiran é mulher feita, já encara as lentes de Pahuja sem borrões que interditem seu rosto, mas a verdadeira guerra das mulheres indianas por dignidade e respeito ainda há de levar tempo. Na Índia, ser mulher é matar um tigre todos os dias.


Filme: Matar um Tigre
Direção: Nisha Pahuja
Ano: 2022
Gêneros: Documentário
Nota: 10