Muitas vezes, é necessário que larguemos tudo, abandonemos a vida que levávamos, sintamo-nos livres para rever determinados pontos de nossa trajetória e, assim, sejamos capazes de acessar os meandros mais obscuros de nosso espírito, tudo para que nos aflore a sensibilidade, passagem mística e sanguínea entre nossa pobre carne e a transcendência onde se revelam todos os segredos.
Entrelaçando as jornadas existenciais de quatro tipos melancólicos nada comuns, cada qual ferido com uma violência muito particular, mas tocando-se em movimentos também graciosos, a dinamarquesa Lone Scherfig faz de “Um Inverno em Nova York” o mosaico de dores e alívio que se transforma numa outra substância, usada para levar o espectador a um mundo em que nunca estivera, mas que conhece tão bem.
Esse mote das ligações cósmicas, vínculo incorpóreo que a humanidade fortalece entre si — magnificamente burilado em filmes a exemplo de “Um Lindo Dia na Vizinhança” (2019), levado à tela por Marielle Heller, ou qualquer um dos trabalhos de Woody Allen e mesmo de Truffaut —, é encarado por Scherfig através das lentes de uma antropologia poética, que pende para soluções meio reducionistas, mas que ninguém pode acusar de delirantes.
A primeira sequência pode enganar. Uma mulher dorme ao lado do marido. Nada de estranho, a não ser pelo fato de que, imediatamente, ela se levanta, acorda os dois filhos e os três saem com o carro, à primeira vista sem saber para onde. Malgrado a fotografia de Sebastian Blenkov invista com acerto em tons frios e escuros que imundam a cena de um azul-petróleo denso, untuoso, o roteiro de Scherfig não deixa margem para tantas especulações quanto ao que se está presenciando.
Clara, a anti-heroína de Zoe Kazan, chega a Nova York contando somente com sua gana de vencer — e, claro, com a urgência de livrar-se do marido, o que mantém o enredo, sobretudo na introdução —, decerto tomada de sonhos cruelmente enganosos acerca de como será seu destino na cidade que resolveu adotar, sabe-se lá por quê. Nova York entra, e nem poderia ser diferente, para incorporar a atmosfera do lugar mágico, que a um só tempo tritura os que se atrevem a desvendar seus mistérios, sem, contudo, tirar-lhes a chance de se provarem capazes de tal feito.
Clara bate à porta do tugúrio onde vive o sogro, Lars, papel de David Dencik, suplica-lhe para ficar por alguns dias, pede-lhe dinheiro emprestado, mas tem de se dar por contente em não ser denunciada, nem às autoridades nem ao filho, um policial implicado em casos de tortura, inclusive contra Anthony, o irmão mais velho, de Jack Fulton. Não muito longe dali, acontecem reuniões de um grupo de apoio a portadores de transtornos emocionais coordenado de forma voluntária por Alice, a enfermeira frustrada e patologicamente absorvida por um ofício que não a satisfaz há algum tempo. Andrea Riseborough deixa “Um Inverno em Nova York” ainda mais pesado, não por dedicar-se a atividades filantrópicas que, no fundo, apenas mitigam sua indigência afetiva, mas por não enxergar nenhuma possibilidade quanto a arranjar um emprego melhor.
No ambiente dos encontros do grupo orbitam os outros dois protagonistas do filme: Marc, o chef francês que comanda o Palácio de Inverno, um restaurante russo decadente, óbvia menção à residência oficial dos czares russos durante os séculos 18 e 19; e Jeff, sem ocupação definida, e incapaz de permanecer em qualquer lugar onde tenha de ser responsável por alguma coisa.
Scherfig amarra os quatro, sem prejuízo do admirável elenco de coadjuvantes. Jay Baruchel na pele de John Peter, o JP, advogado que representa a personagem de Kazan no processo contra Richard, o agora ex-marido, com Esben Smed numa participação burocrática, muito diferente do show que se aprecia em “Um Homem de Sorte” (2018), de Bille August; e Bill Nighy como Timofey, o russo de araque dono do Palácio de Inverno, preenchem respiros cômico-dramáticos de modo a elevar o todo a uma categoria ainda mais soberba. O Marc de Tahar Rahim, vive um romance improvável e tocante com Clara — bem menos estimulante que o de Alice e JP —, ao passo que Jeff, encarnado por Caleb Landry Jones, continua só, ainda que mais cômodo no mundo real. E Nova York testemunha tudo, fria, mas atenta.
Filme: Um Inverno em Nova York
Direção: Lone Scherfig
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 9/10