Renove seu espírito: comédia na Netflix é uma dose de felicidade para o coração Divulgação / Netflix

Renove seu espírito: comédia na Netflix é uma dose de felicidade para o coração

Os clássicos vencem a bruma corrosiva do tempo e são capazes de resistir — ao correr dos anos, ao derruimento dos hábitos, à própria morte — porque encerram uma sabedoria óbvia e invisível, que não se peja em passar ao largo das convenções. Malgrado uma leveza inconsequente — e algo pueril —, há uma gota de Liev Tolstói (1828-1910) em “O Preço da Família”, a dramédia do italiano Giovanni Bognetti. Em “Anna Kariênina” (1877), obra em que levanta alguns dos tantos véus das relações humanas proclamando verdades categóricas que apenas se moldam às quadras do existir, o russo imortaliza uma das sentenças mais cortantes a respeito de famílias, suas poucas bênçãos e suas inúmeras tragédias. Logo na primeira linha de um dos romances fundamentais da literatura de todos os tempos, o escritor fulmina quem ousa lê-lo dizendo que as famílias venturosas são muito parecidas umas com as outras; as colhidas por fracassos os mais aniquiladores, por outro lado, essas sim fazem da desdita sua própria natureza, o que as compõe e as torna únicas.

Protagonizado por Christian de Sica — o filho do grande Vittorio, o ex-casanova de  produções modestas que ascendeu ao lugar de um dos três tenores do cinema da Itália do pré-Grande Guerra, junto com Visconti e Rossellini (e que Antonioni não me ouça) —, o longa de Bognetti tem muito do calor afetuoso das histórias de uma era decididamente morta, parecendo-se ainda mais com as chanchadas de Fellini, sobretudo “E La Nave Va” (1983) e “Amarcord” (1973), nessa ordem. Esse novo cinepanettone, como são conhecidos entre os italianos os filmes voltados à temática natalina, chega requentado — tanto que, no Brasil, ganha o título medonho citado antes —, mas não menos saboroso. Se não, vejamos.

O diretor-roteirista quer, antes de qualquer outra coisa, falar dos desajustes entre as gerações. Para isso, mira, claro, essa época tão mágica quanto exasperadora, cujo condão de despertar nas gentes de todo o mundo seu lado mais humano e não menos monstruoso sobrevive, por uma promessa de conversão autêntica ou pela força da hipocrisia mesmo. Carlo, o patriarca vivido por De Sica, e a mulher, Anna, interpretada por Angela Finocchiaro, andam desgostosos, ainda mais sem rumo depois que os filhos tornaram-se adultos — ao menos sob o ângulo da biologia. O primogênito Emilio, personagem de Claudio Colica, e Alessandra, papel de Dharma Mangia Woods, batem cabeça em empregos ordinários numa cidade maior, principalmente a caçula, ganhando a vida como secretária de Rocco, seu namorado dentista, de Francesco Marioni. Ninguém em pleno gozo de suas faculdades mentais enxerga em nada disso problema algum, até porque Emílio e Alessandra já são bem crescidinhos aos trinta e poucos e vinte e muitos anos. Mas Anna não sente (ou não admite) que os rebentos tenham sua própria vida, ou, ao menos, outras ambições que não experimentar sua lasanha pela milionésima vez. Para persuadi-los a celebrar o Natal todos juntos em seus constrangimentos, como toda família normal, a dona de casa e o marido elaboram um plano — ou melhor, Anna o elabora; Carlo apenas o referenda — e ao descobrirem o verdadeiro caráter de Emilio e Alessandra, são obrigados a, agora trabalhando em dupla, inventar uma porção de outras mentirinhas brancas, que logo, por evidente, saem do controle. Nesse caldeirão de loucura refervem arcaicíssimas mágoas, enquanto outras novas em folhas passam a espocar, quentes como o inferno, nos olhos dos quatro. Mas isso aqui é uma comédia, quase um besteirol, que fique claro.

Há um segmento do filme — que não revelo nem sob tortura — especialmente perturbador para mim. Tio Gian acredita desde tenra idade que a vida ensina, e o faz dando um ou outro sinal, ora tão sutil que gênios da semiótica não notam, ora desabridamente escandalosos a ponto da sabedoria das crianças, acusadoras da nudez dos monarcas sem cerimônia alguma, captar nas ondas do pensamento. Certa feita, li numa revista inglesa sobre pais que “divorciam-se” de filhos, e vice-versa. Deveria ser o caso aqui. “O Preço da Família” diverte — a sequência de encerramento é de um tragicômico digno de Oscar —, mas fica muito longe de penalizar os costumes. A propósito, podem ir botando a leitura em dia, catar o feijão ou tratar de qualquer outra incumbência na hora e meia anterior, porque quando Giuliana, a avó encarnada por Fioretta Mari, entra de fato na trama, quem piscar vai ter-se como a pior das criaturas por cem natais, que transformam-se com os usos e as gentes, para satisfazer a curiosidade de quem, há mais de um século, vem perguntando.


Filme: O Preço da Família
Direção: Giovanni Bognetti
Ano: 2022
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.