Quando acordar vou dizer que eu te amo

Quando acordar vou dizer que eu te amo

Cláudio caiu do telhado. Faz muito tempo que a gente não se vê. Desentendemo-nos por questões políticas, sabem como é. Acho que todo mundo passou por isso no Brasil, nos últimos anos. Ainda não tive coragem de fazer uma visita à família. Covardia é o meu forte. Cláudio sempre gostou da roça, do gado, do céu estrelado e de outras coisas simplórias do meio rural, sabem como é. Acho que estou sendo repetitivo e que já afirmei “sabem como é”. Pode ser que vocês não saibam nada disso. Deve ser uma espécie de negacionismo da minha parte por causa da amargura, sabem como é, pois, caía a tarde feito um viaduto e o Cláudio despencou do telhado, provocando na gente um enorme dano emocional.

O acidente aconteceu num sábado. Cláudio cismou de subir no telhado da casa da fazenda para lavar doze placas solares que ele tinha financiado. Andava animadíssimo com a economia dos últimos meses, desde que decidiu instalar a sua própria usina solar, derrubando a conta de luz a patamares absurdamente baixos. Um dos funcionários tinha se oferecido para fazer o serviço, que parecia melindroso e arriscado desde o início, mas, o Cláudio — vocês não sabem — sempre fora um sujeito prestimoso, determinado, autossuficiente, para não dizer teimoso, que seria um adjetivo duro em demasia para ser aplicado contra um amigo que sequer está aqui para se defender.

Fato é que que o Cláudio nem bem começou a executar o serviço de limpeza das tais placas importadas da China, quando patinou no lodo de uma telha, perdeu o equilíbrio e caiu de uma altura que nem parecia tão expressiva assim, mas, alta o suficiente para lhe partir um punhado de ossos e a própria cabeça. Ainda não sei o que vou dizer quando estiver com seus familiares. A gente fica sem bolsos onde enfiar as mãos, fica se imaginando naquela situação constrangedora de ter que escolher as palavras mais apropriadas para expressar o quanto se sente arrebatado pelo fatídico acontecimento. Acho que funciona assim para a maioria das pessoas. Muitas vezes, o silêncio e as lágrimas acabam falando por si mesmos, o que não deixa de ser uma reação corporal bastante conveniente.      

Acidentes domésticos são inconvenientes mais comuns do que se imagina. Sem muito esforço, consigo me lembrar de, pelo menos, cinco indivíduos, digamos, próximos a mim, que perderam a vida ao trocar uma lâmpada queimada, ao procurar um objeto guardado no maleiro do armário, ao desenganchar uma pipa que tinha ficado presa na comunheira, ao escorregar da própria altura durante o banho, ao deixar escapulir pelo vão dos braços uma criança que era jogada para cima, por mera brincadeira, num raro momento de descontração.

Toda ação leva a uma reação, por menos que se queira. Lembro-me de como o Cláudio era um estudante brilhante, contudo, sonolento, e de como “pescava peixes com a cabeça” durante as aulas na faculdade. Acho que as vozes dos professores, por mais capacitados e carismáticos que fossem, funcionavam como verdadeiras canções de ninar aos ouvidos do Cláudio. Talvez, sem que ele próprio soubesse, sofresse dalgum distúrbio hormonal ainda não diagnosticado na tireoide ou nas adrenais. Quem sabe, roncasse à noite, padecesse da famigerada apneia noturna que sufocava o sujeito durante o sono, redundando numa sonolência diurna acima da média ao ter que enfrentar horas e mais horas de aulas teóricas durante o período da graduação.

Faz dois meses que o Cláudio caiu do telhado. Parece que foi ontem. Parece que foi nunca. Não há previsões de quando ele vai acordar, se é que vai acordar. As pessoas não gostam que se diga isso. É preciso um maior grau de otimismo. A torcida, portanto, é grande pelo seu pronto restabelecimento. Muita gente rezando, fazendo promessa, convergindo as correntes positivas de pensamento, dentre outras providências subjetivas e imponderáveis que tomamos sempre que bate o desespero.

A família, os amigos, os colegas de trabalho, os funcionários, as suas pacientes, todo mundo espera que o Cláudio desperte o quanto antes do coma, como se tivesse sido cutucado por um de seus contemporâneos do curso de medicina. E que ele se sente perplexo sobre a cama da suíte do casal que fora transformada numa espécie de leito de UTI domiciliar. E que ele sorria de si mesmo ao saber por terceiros que tinha caído do telhado da casa da fazenda ao executar uma tarefa aparentemente simples, vocês sabem como é. Sosseguem. Ninguém sabe nada. Todos andam à espera de um milagre, miseravelmente confiantes, sentindo aquele tipo de esperança que só o amor sustenta e explica.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.