Filme da Netflix aplica uma teoria de Nietzsche para desafiar a sua mente e dar um nó em seu cérebro Divulgação / Netflix

Filme da Netflix aplica uma teoria de Nietzsche para desafiar a sua mente e dar um nó em seu cérebro

Uma sociedade perdida, cansada e em busca de algum alento se deixa deduzir mais facilmente por soluções rápidas, persuasivas e erradas. É óbvio que há muita gente que pagaria o quer que fosse para se livrar da inconveniência da morte — e até se submeteria à própria morte, desonrosa, a fim de continuar a viver, sem um propósito; contudo, o preço poderia ser alto demais.

A morte cai bem para o cinema. Desde sempre, os filmes retratam como seria vencer o fantasma do encerramento da vida terrena, súbito ou arrastado, doloroso ou mais para doce, aos cem anos ou nas primeiras horas fora do útero materno, todas essas situações dramáticas, cada qual numa medida. De “Ghost — Do Lado da Vida” (1990), dirigido por Jerry Zucker, a “Os Outros” (2001), de Alejandro Amenábar, passando por “O Mistério da Libélula” (2002), levado à tela por Tom Shadyac, ou “A Casa dos Espíritos” (1993), de Bille August, por onde passa a morte deixa choro, lembranças boas e ruins, sonhos frustrados, mas a característica mais marcante da passagem da morte pela vida de alguém que nos é caro é a reflexão sobre se não seria justo que aquela pessoa  tivesse uma outra chance. Morremos de medo da morte, essa é a verdade.

“The Discovery” (2017), segundo longa de Charlie McDowell, carreira iniciada com a comédia romântica “Complicações do Amor” (2014), alonga-se sobre a interferência da inteligência artificial sobre a vida e, claro, sobre a morte, o que se comprova graças aos experimentos cartesianamente testados do doutor Thomas Harbor de um Robert Redford visivelmente estafado — e isso nada tem a ver com a idade, visto o desempenho empolgante do ator em Nossas Noites (2017), de Ritesh Batra. Para divulgar a tal descoberta do título, Harbor concede uma entrevista ao vivo à tarimbada âncora de um programa jornalístico vivida por Mary Steenburgen, mãe de McDowell, que tenta arrancar dele alguma inconfidência que revele os bastidores do maior evento científico desde que o microbiólogo britânico Alexander Fleming (1881-1955) chegou acidentalmente à penicilina, ingrediente farmacêutico ativo de quase todos os antibióticos ainda hoje, em 1928. A entrevista é subitamente interrompida devido a um acontecimento inesperado que provoca escândalo, inclusive em Harbor, que parecia lidar bem com aquele fuzuê todo em redor de sua figura misantrópica.

A escolha do diretor por promover o clima noir da cena, e fazê-lo crescer de pouco em pouco, já a partir da abertura, transmite a sensação de que há uma névoa de mistério em volta da história, elemento reforçado do ponto de vista estético pela fotografia de Sturla Brandth Grøvlen. É como se corresse entre o espectador e a cena um fluxo de água que desacelerasse a ação, tornando ao mesmo tempo baça, suja. Existe uma urgência de McDowell em fazer as comunicações prévias de sua narrativa, mas há também uma ânsia por preservar o aspecto de distância entre quem assiste e o que é contado.

A consequência direta e inescapável do que Harbor é uma taxa de suicídios a níveis estratosféricos, todos de pessoas seduzidas pelo discurso do personagem de Redford, ansiando, por evidente, poder voltar com a ministração do tratamento. O fenômeno, peste pandêmica que governo nenhum consegue domar — pelo contrário, determinados países fazem campanhas pela aderência ao novo método, a fim de desinchar o sistema de saúde e a previdência —, traz à tona alguns esclarecimentos sobre o jeito idiossincrásico de ser do protagonista. A entrada em cena de Will, um dos filhos de Harbor interpretado por Jason Segal, deixa à mostra uma faceta de vulnerabilidade do cientista. Will e o pai não se dão bem, principalmente por causa das atividades desenvolvidas por Harbor. Enquanto se desloca de balsa para a área isolada onde o cientista segue com as experiências, o personagem de Segal puxa assunto com Isla, a única passageira além dele. O tipo a que Rooney Mara dá vida, reservado, frio, meio agressivo até — como seu pai —, não o quer por perto, mas não é ousada o bastante para enxotá-lo, como se fosse precisar dele para alguma coisa, pressentimento que corroborado a dada altura do roteiro de McDowell e Justin Lader.

As diferenças de temperamento e os embates entre Will e seu irmão, Toby, de Jesse Plemons, entusiasta de primeira hora e colaborador devotado do pai, temperam a história de passagens mais ritmadas, uma vez que o romance entre os personagens vividos por Segal e Mara não engata. No que diz respeito ao componente de ficção científica propriamente, o trabalho de Charlie McDowell, ratifica o lugar-comum, tão surrado quanto verdadeiro, de que esse gênero talvez seja o mais prodigo de referências a luz da filosofia acerca da vida, seu fim e seu possível recomeço, e o mais feliz nesse propósito. Como se aprisionados numa ilha junto a uma cornucópia de recordações, os personagens de “The Discovery” se perderam no turbilhão que mistura realidade e ilusão, vida e sonho, o que só os faz mais reclusos em seus próprios mundos. Seria essa a vida além vida artificialmente fabricada.


Filme: The Discovery
Direção: Charlie MacDowell
Ano: 2017
Gênero: Ficção Científica/Romance
Nota: 9/10