A bulha mais desleal é aquela que se dá contra um morto — em favor deste, claro. Quem quer que permaneça no mundo dos vivos, por mais forte ou autoconfiante que se tenha, jamais conseguirá vencer o conceito idealizado, a imagem romanceada de alguém que parte para um reino cujas dimensões ou mesmo a concretude real nem a mais avançada das tecnologias há de mensurar, uma terra onde todo pesar, toda mágoa e até toda a crueldade do defunto ajustam-se a uma lente distorcida, que as projeta sem mácula alguma do outro lado. A britânica Daphne Du Maurier (1907-1989) toma o cuidado de manter a personagem-título de “Rebecca – A Mulher Inesquecível” a salvo da bruma corrosiva do tempo, fazendo com que a onipresente memória dessa mulher perfeita habite apenas as entrelinhas das conversas, as frestas das paredes, os monogramas das toalhas e da roupa de cama, e, assim, esteja sempre muito acima do bem e do mal, incólume ainda que fustigada pelo julgamento mais severo, como se rindo da audácia de quem supôs ter o condão de usurpar-lhe um trono em que se mantém com a providencial ajuda de gente de carne e osso, com motivos acerca dos quais a romancista se demora aos poucos. Publicada em agosto de 1938, a novela de Du Maurier, sobre uma mulher recém-casada que ascende na escala social mediante o matrimônio, mas é subjugada pela lembrança que o marido ainda tem da falecida esposa, foi um sucesso estrondoso muito antes da versão de Alfred Hitchcock (1899-1980), levada à tela em 1940 com ninguém menos que Joan Fontaine (1917-2013), Laurence Olivier (1907-1989) e Judith Anderson (1897-1992) nos papéis cuja soma engenhosa, quase metafísica, faz girar o eixo do trabalho de Hitchcock. No mesmo ano em que a primeira edição de “Rebecca” foi à praça, outro gênio, Orson Welles (1915-1985), adaptou o livro, o mais vendido de oito décadas e meia atrás, para o rádio, dirigindo o elenco do Mercury Theatre de New York, fundado por ele em 1937. De tudo isso, avalia-se a grande responsabilidade de Ben Wheatley em querer dar uma terceira vida ao poderoso texto original.
Os roteiristas Anna Waterhouse, Jane Goldman e Joe Shrapnel optam por preservar ao máximo a fidelidade à “Rebecca” de Du Maurier, e aferram-se a circunvoluções à estrutura do romance, como se se pudesse ouvir ressoar em alguma parte a famosa frase de abertura, a que se refere textualmente a um sonho e a Manderley, o palacete mal-assombrado onde se passa quase toda a ação. Pouco depois, Wheatley desloca a narrativa para Monte Carlo, onde uma garota do diminuto e sofrido proletariado da capital de Mônaco é obrigada a suportar os desmandos de sua patroa. Esse núcleo talvez seja a grande fonte de contradições dessa última releitura da novela, que propõe uma discussão assertiva, malgrado ligeira, no que toca à pauperização dos trabalhadores na Europa de 1935, entre a Grande Depressão de 24 de outubro de 1929 e seu epílogo, que coincide com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). O diretor personifica na figura da senhora Van Hopper, de Ann Dowd, essa nonchalance com o caos sociopolítico do cenário internacional, e enquanto o aço dos canhões não crepita, o que espoca são as garrafas de champanhe, indo e vindo pelos salões dourados da fotografia de Laurie Rose, inundados pelo jazz suingado na trilha de Clint Mansell — que, erroneamente, suaviza o tom melancólico no terceiro ato. É nesse ambiente, depois das valsas, que George Fortescue Maximilian “Maxim” de Winter, o aristocrata interpretado por Armie Hammer, encontra a substituta para Rebecca, a falecida esposa, cuja figura nunca materializa-se. Ele se interpõe entre ela e a megera Van Hopper, carrega-a dali para momentos de idílio que culminam em sexo duradouro e apaixonado e, por evidente, os dois se casam e a garota transforma-se na nova senhora De Winter. Em Manderley.
Lily James tira do roteiro novos pontos de vista para sua personagem, numa postura corajosa, mas arriscada. Uma das marcas da trama nascida da pena de Du Maurier é a inocência quase pueril da moça, que de tão insignificante, sequer tem nome. A “Segunda Sra. De Winter” consuma sua sexualidade com Maxim; todavia, a energia de James não o deixa explícito, quiçá até sinalizando para uma justificativa equivocada ao incômodo que desperta na mansão, interpretação dúbia que Fontaine esmera-se em contornar. Por outro lado, Kristin Scott Thomas está quase irretocável na pele da senhora Danvers; sua compreensão da governanta dos De Winter, original e reverente a um só tempo, tem o condão de instigar novas emoções sobre essa mulher ressequida, encruada em si mesma, padecendo da ausência da empregadora morta como se houvesse algo mais que um vínculo de submissão patronal de si para a primeira mulher do amo, impressão que Anderson também deixa. A tensão sexual de Maxim para a nova esposa e vice-versa e, o principal, da senhora Danvers para o fantasma que todos insistem em alimentar — inclusive a heroína de James, embora sua covardia a leve a alucinações de fato martirizantes, com trepadeiras que saem do duro assoalho da casa e arrebatam-na, ou pessoas num baile de máscaras que gritam o nome da finada como se invocando o próprio diabo —, continua a ser o grande trunfo de “Rebecca – A Mulher Inesquecível”, um romance gótico cuja tonalidade de obra-prima não esmaece, a despeito de umas tantas modernices.
Filme: Rebecca – A Mulher Inesquecível
Direção: Ben Wheatley
Ano: 2021
Gênero: Romance/Drama
Nota: 8/10