O amor resiste o quanto pode a intervenções externas, como se vê logo nas primeiras sequências de “Seu Nome Gravado em Mim”. O taiwanês Liu Kuang-Hui tem sempre boas saídas para fomentar a apreciação estética de seus trabalhos, visualmente ricos e cujo conteúdo vai discrepando com sutileza da expectativa de construções harmônicas também no que é dito. A narrativa destrinchada pelo roteiro de Chu Yu-ning, célebre na indústria cinematográfica asiática por saber tocar em assuntos controversos, espinhosos, malditos com poesia, como se vê à medida que o filme toma corpo. A esquizofrenia social da Taiwan de 1987, quando se passa a história, iniciada cerca de quatro décadas antes, é um dos tantos ludíbrios que Chu lança sobre o público, justamente devido à naturalidade fria com que é posta à mesa. Como se precisasse apenas dessa primeira chancela a fim de se legitimar, tudo quanto se passa em cena já passa a dominar o coração da audiência, exatamente da forma sugerida pelo título. Quanto mais se espera por soluções felizes, menos interesse por elas o diretor trata de manifestar.
Um padre branco põe um disco para rodar no gramofone, e, aos poucos, “Seu Nome Gravado em Mim” começa a fazer sentido. Chang Jia-Han, um dos alunos de uma escola católica de Taiwan, ferido, principia uma longa confissão, e uma tela emulando um pergaminho reproduz a mensagem dos Cânticos, que complementa a imagem do quadro anterior. Jia-Han, composição a um só tempo sensível e brutal de Edward Chen, concentra em si o paradoxo delicado e rude, doce e amargo do amor que não ousa revelar sua real natureza, talvez desconfiado do quão progressista e liberal pode vir a ser, do dia para a noite, uma sociedade ao cabo de 38 anos e 57 dias de repressão política e vigilância estrita dos costumes. Claro que o sentimento amoroso, quando é capaz de sair das linhas tortas das elucubrações de noites insones e projetar-se impetuoso sobre a vida real, faz questão de desprezar convenções, mas assim mesmo, o decreto do presidente Chiang Ching-kuo (1910-1988), de 14 de julho de 1987, é quase nada para garantir que cada um passa, afinal, a ser dono do próprio nariz, e de todo o resto. A abertura, com Chen e Fabio Grangeon na medida exata de dor e glória, respectivamente, fica no subconsciente de quem assiste; entretanto, o texto de Chu reserva passagens de lirismo mais peremptório, que remetem, de caso pensado ou não, à água em suas configurações mais variegadas. É na piscina olímpica, durante uma aula de condicionamento aquático, que Jia-Han arrisca uma conversa meio tola com Wang Po-Te, o Birdy, com Tseng Ching-hua a princípio um tanto congelado no papel do aluno novo, inscrito na turma H de Artes Liberais, duas características que anulam-se entre si e enfraquecem o todo a uma análise ligeira, mas que preparam os ânimos para os segundo e terceiro atos.
O diretor lança mão de muitos dos lugares-comuns dos romances entre dois garotos, em especial, a violência, a inadequação da autodescoberta, o medo e o abuso, a exemplo do ultraje perpetrado contra Jia-Han pelo personagem de Chih-Ju Lin. A água vai se cristalizando como a metáfora de fato mais poderosa de “Seu Nome Gravado em Mim”, quebrando o gelo do amor proibido num banho nada poético, ou, depois que os dois rapazes já se tornaram quem são, no mar, ambos nus. No desfecho, passados trinta anos, o reencontro numa praça de Quebec, no Canadá, sugere que, talvez, ainda haja tempo. Afinal, estão ligados para além da carne.
Filme: Seu Nome Gravado em Mim
Direção: Liu Kuang-hui
Ano: 2020
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10