O filme mais agonizante, perturbador e assustador da história do cinema está no Prime Video Divulgação / Warner Bros. Pictures

O filme mais agonizante, perturbador e assustador da história do cinema está no Prime Video

Os costumes mudaram tanto que “O Exorcista” até pode ser considerado um filme de época. A maneira quase heroica como William Friedkin traduziu uma pletora de assuntos somente vistos à luz do excêntrico, da bizarria, do tabu e, por óbvio, do preconceito soa hoje como mero oportunismo — o que não deixa de ter seu fundo de verdade —, mas o diretor, um dos poucos em Hollywood que assumem sua paixão pelo que a vida tem de mais inadequado, não permite que a história resvale no ordinário, alertando seu público, mesmo que inconscientemente, para a universalidade do mal, um mal que ninguém é capaz de dominar, confundido com paranoia, histeria, depressão severa, dependência química em estágio avançado e as tantas outras variações de moléstias que interditam o livre-arbítrio do homem, e o cerca no terreno do sobrenatural. Com efeito, o argumento central de “O Exorcista”, da mesma forma que em qualquer produção congênere, concorre para a apreciação de temas facilmente explicáveis sem o auxílio da parapsicologia, o que a novela de William Peter Blatty (1928-2017) deixa muito claro. Publicado em 1971, a grande iluminação de “O Exorcista” é saber harmonizar os elementos do terror puro a suas possíveis justificativas lógicas, predicado que facultou ao autor a versão do texto escrito para a tela, onde Friedkin mantém, um por um, os dilemas morais e a derruição do espírito de seus personagens, lutando contra um inimigo poderoso e covardemente astuto, que usa as armas que suas vítimas não sabem que têm.

Chris MacNeil tenta não sucumbir ao desespero ao se dar conta de está sem trabalho, sem marido e com uma filha para criar. Sua carreira parece à beira de um ocaso melancólico e precoce, e Chris, há algum tempo sem conseguir um papel que ao menos garanta a um prato de comida à mesa todos os dias e alguma dignidade, reúne toda a angústia existencial de uma mulher em tais condições. Não se pode dizer até que ponto a preocupação com coisas humanas, demasiado humanas, transborda para problemas de ordem psíquica — e, mais importante, em que medida seu desequilíbrio implica o que se dá ao longo de boa parte dos 132 minutos de projeção —, mas a atriz interpretada por Ellen Burstyn decerto é a porta pela qual o demônio atravessa, decidido a fazer de sua vida o caos que poucos infelizes no mundo já experimentaram. Burstyn confere a sua personagem o misto de fragilidade, ternura, insânia e amargor, e seu comportamento liberal em domínios afetos a amor, casamento e, por evidente, vivências sexuais é o aspecto mais oculto no desenlace do conflito envolvendo sua filha, Regan. De um jeito reconhecidamente subversivo para a comunicação de massa de há meio século — e que parece ter reservado exclusivamente para o trabalho de Friedkin —, Blatty é corajoso ao frisar a energia de fêmea de Chris, até que começa então a reparar nas atitudes entre esdrúxulas e de uma desabrida afronta às convenções, mesmo para ela. Nasceu daí a ideia de dar espaço à cena de Regan masturbando-se com o crucifixo, e nesse diapasão, entra o padre Damien Karras.

O jesuíta bonito, jovem e cheio de velhas e novas elucubrações nada dogmáticas acerca da fé que o deveria sustentar; da Igreja, a instituição que representa; da vida; da morte e de si mesmo, é visivelmente fraco demais para achar o fecho de um imbróglio dessa grandeza, e Friedkin aproveita esse gancho para insinuar a tensão sexual que o martiriza ainda mais que a doença terminal da mãe. No corte do diretor, Jason Miller (1939-2001) e Burstyn deixam subentendida a natureza bastante carnal do vínculo que instauram — estratégia reeditada pelo português Carlos Coelho da Silva no primeiro segmento de “O Crime do Padre Amaro” (2005), este, sim, uma cópia tão fidedigna quanto possível do romance homônimo de Eça de Queiroz (1845-1900) —, ao passo que Linda Blair faz o diabo e oferece ao espectador uma das performances mais vívidas do cinema entre um e outro esguicho de vômito amarelo-esverdeado, feito de uma beberagem de peras cozidas, o que lhe valeu a indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante. Se Karras não pôde com Regan e sua força estranha, alguém teria de fazer o trabalho sujo. O padre superior Merrin chega a “O Exorcista” para resolver a questão na marra, e Max von Sydow (1929-2020), na flor da idade, é a encarnação do vigor anímico que falta ao colega. Friedkin propõe a Von Sydow uma brincadeira metalinguística que o ator encampa com graça, lembrando seu Antonius Block, de “O Sétimo Selo” (1957), de Ingmar Bergman (1918-2007).

As histórias de bastidores e as lendas urbanas que cercam grandes filmes como este chegam a ser tão perturbadoras quanto o próprio longa. Circula até hoje o boato de que Blair teria sido assassinada durante as filmagens, o que tem lá sua graça. A atriz, lamentavelmente, é o alvo da grande ironia de “O Exorcista” ao trocar de lugar com a personagem de Burstyn e não ter conseguido trabalhar em nada digno de seu talento, maldição que sobrepujou também o próprio Friedkin, homem de cinema do tempo em que a voz do diretor nunca abafaria a do estúdio. Em nossos dias, o mercado de extras, com as cenas barradas pelas distribuidoras, azeita a roda do show business, sobretudo em tempos de pasteurização cultural pandêmica. E todo mundo fica satisfeito.


Filme: O Exorcista — A Versão que Você Nunca Viu
Direção: William Friedkin
Ano: 1973
Gêneros: Terror/Suspense
Nota: 9/10