Obra-prima de Tom Hanks, ignorada pela crítica e pelo público, é um dos melhores filmes da história da Netflix Bruce W. Talamon / Netflix

Obra-prima de Tom Hanks, ignorada pela crítica e pelo público, é um dos melhores filmes da história da Netflix

Homem da guerra, Jefferson Kyle Kidd, o personagem de Tom Hanks em “Relatos do Mundo” — mais um para sua vasta galeria de tipos memoráveis —, passa a ganhar a vida exercendo um ofício um pouco menos arriscado, mas estimulante quase na mesma proporção: recontar a um público seleto o que acontece para além dos limites dos vilarejos mais longínquos da América profunda num tempo em que isso era o máximo da tecnologia no processo de difusão de textos jornalísticos. Essa imagem, trabalhada com a sofisticação de sempre por Paul Greengrass — com quem Hanks volta a estabelecer uma parceria de sucesso, como já se dera em “Capitão Phillips” (2013) —, enaltece mais uma vez o heroísmo como virtude fundamental para a manutenção de padrões mínimos de civilidade entre os povos, mesmo os de uma nação em comum, que aprendia a duras penas o valor do respeito à diversidade. “Relatos do Mundo” só toca o verniz de argumentos importantes, a exemplo da promulgação da Décima Terceira Emenda, em 31 de janeiro de 1865, responsável por invalidar o regime escravocrata nos Estados Unidos — medida que o sul antiabolicionista teve de engolir com um copo de fúria —, mas é hábil ao esmiuçar outros aspectos sociológicos do período que se propõe a retratar, época de muita conflagração no país.

A vida é movimento e quanto mais cedo se entende que é inútil lutar contra seus desígnios; que é impossível vedar a correnteza de eventos que se ultrapassam uns aos outros; que não faz sentido querer impor sua própria vontade à espiral de fogo que toma o destino do homem, numa concertação inexpugnável de terra, fogo, ar e água, além daquilo que não se nota, mais sereno alguém pode ser. O mundo era ainda muito maior há cerca de 150 anos, tempo em que o homem era refém das circunstâncias, estava sempre a reboque dos fatos e nunca conseguia entender muito bem sua própria sociedade. A invenção dos tipos móveis e, por extensão, o aparecimento da imprensa, mais de quatrocentos anos antes, em 1439, pelo alemão Johannes Gutemberg (1398-1468), não veio acompanhada das necessárias transformações de que as pessoas se ressentiam. Saber ler era um privilégio para muito poucos num planeta que apenas começava a se industrializar — e que permanecia imerso na ignorância e na má-fé de patrões que não reconheciam qualquer direito a seus funcionários, isso para ficar somente no que acontecia nas grandes cidades. Nos rincões que a lei não alcançava, o que valia ainda era o Código de Hamurábi e sua lei de talião, sem, claro, espaço para sutilezas filosóficas como o entendimento e a preservação de minorias étnicas.

O roteiro de Greengrass e Luke Davies é ambientado em 1870, cinco anos depois da Guerra Civil Americana, também chamada de Guerra de Secessão, entre 12 de abril de 1861 e 9 de abril de 1865, marco das diretrizes a serem tomadas pelos Estados Unidos quanto a transformar-se num Estado democrático de direito de fato. Kidd, livremente inspirado num personagem real tirado do livro homônimo da romancista americana Paulette Jiles, é um leitor de notícias do Texas que roda o país no intuito de manter bem-informados os que dispõem de dez centavos e de tempo para ouvir, como ele costuma dizer para anunciar seus serviços. Num desses deslocamentos, o personagem de Hanks se depara com o cadáver de um homem negro, enforcado numa árvore. A seguir, a câmera se movimenta para alguém que corre para dentro do souto; o capitão Kidd persegue o fugitivo e ele e o público ficam a saber que se trata de uma garota branca, de cabelos e olhos muito claros, apavorada por temer que lhe aconteça o mesmo. Conforme a sequência avança, se conhece a identidade dela: é Johanna Leonberger, papel defendido com primor pela estreante Helena Zengel, uma germano-americana criada por uma tribo Kiowa não se sabe por quê. Doravante, Hanks e Zengel permanecem juntos até o belo desfecho, e nessa primeira virada, Greengrass aproveita para introduzir o problema racial na formação dos Estados Unidos, aludindo aos três principais grupos étnicos a povoar o território americano, índios, brancos e negros, nessa ordem, feito no Brasil — como se sabe, nos dois países também se comprova a radicação de imigrantes italianos e asiáticos ao longo da primeira metade do século 20.

“Relatos do Mundo” torna-se um road movie emocionante em que Kidd e Johanna partilham das mesmas apreensões quanto ao futuro e arrostam iguais perigos num Velho Oeste por civilizar-se, encarnados por tipos marginais como Ron Avalon, de Michael Angelo Covino, com quem o capitão divide uma sequência de tiroteio das mais mesmerizantes do cinema. A magistral trilha sonora de James Newton Howard ajuda o público a captar um bom bocado do que era viver num país ainda em busca de identidade, missão que vultos como os representados pelo protagonista de Tom Hanks tomaram como sua razão de existir — a despeito de tudo que se deva criticar nesse herói politicamente incorreto e humano, demasiado humano.


Filme: Relatos do Mundo
Direção: Paul Greengrass
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Ação
Nota: 10