Talvez esteja próximo o dia em que teremos o grande privilégio de dispor de órgãos que se dedicam integralmente ao nosso bem-estar, resolvendo por nós o que devemos ou não fazer em determinadas situações, e, em surgindo qualquer chance de se fazer hospedeiro de pensamentos inadequados, nosso salvador se encarrega de tornar o cenário outra vez límpido, sereno, antes mesmo que possamos nos dar conta. “Assassin’s Creed” navega por esses mares turvos investindo num argumento demasiado complexo para suas modestas pretensões. Justin Kurzel absorve a essência da franquia de videogames em que o jogador muda de fase ao passo que vai dando cabo de inimigos de outras épocas e mundos, adversários também — e, em especial — da natureza própria da vida, repleta de suas contradições fundamentais, e do poder de escolha de cada indivíduo, nem sempre muito claro, mas das poucas coisas que deveria ter de inalienavelmente sua. Não por acaso essas figuras, entre justiceiros e clérigos de uma seita macabra, receberam a alcunha de Assassinos, mas o roteiro de Adam Cooper, Bill Collage e Michael Lesslie é habilidoso e esclarece que a carga de reputação duvidosa desses guerreiros é, na verdade, motivo de admiração.
Por séculos, a Ordem dos Templários procura a lendária Maçã do Éden, dispositivo que guarda a semente da desobediência e do livre-arbítrio, isto é, quem detiver o controle da tal Maçã, exercerá também o domínio sobre os rumos de governos de nações ricas de todo o planeta, terá a chance de empregar orçamentos trilionários nas causas que entender justas, sem dar satisfação a ninguém, e, por óbvio, poderá fazer civilizações prisioneiras pelo resto da eternidade. Os Assassinos, como a terminologia original do vocábulo aponta, são os que batem de frente com o estabelecido e arvoram-se a combater os Templários, conceito que fica muito menos difuso no jogo que no enredo fílmico. Na Andaluzia do final do século 15, a sociedade chefiada por Aguilar, uma espécie de feiticeiro responsável por difundir o conhecimento, é acossado pelos poderosos de turno; o trio de roteiristas propõe um salto no tempo, e Cal Lynch, um condenado cuja época até pode já ter passado — lembre-se de que o filme é de 2016 — vive apenas para esperar a morte, até que os Templários (e quem mais seria?) aparecem para resgatá-lo, o que, definitivamente, não tem nada a ver com altruísmo ou militância por direitos humanos. Lynch, com Michael Fassbender concentrando todos os olhares, é o próprio descendente de Aguilar, e por meio de seu DNA pode-se chegar à lacuna entre o presente e o passado e, assim, se por as mãos na fruta que sacia a fome de sabedoria dos investidores da Abstergo, a corporação cujo diabólico presidente, Alan Rikkin, de Jeremy Irons, fez dessa busca sua razão de viver.
É impossível levar “Assassin’s Creed” a sério, e Kurzel o sabe, tanto que fez questão de preservar a essência farsesca do videogame. Graficamente impecável, pleno de sequências com lutas bem coreografadas, o bom mesmo aqui é embarcar no delírio proposto pelo filme, reparando nos belos olhos de Marion Cotillard, a doutora Sophia, tão psicopata quanto o pai.
Filme: Assassin’s Creed
Direção: Justin Kurzel
Ano: 2016
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 7/10