Filme na Netflix conta a história de uma das bandas mais polêmicas da música brasileira Divulgação / Dan Behr

Filme na Netflix conta a história de uma das bandas mais polêmicas da música brasileira

Em uma coisa “Legalize Já — Amizade Nunca Morre” acerta em cheio: a pobreza cultural que assola o Brasil desde sempre — mais agressiva de tempos em tempos, porém crônica, sem remédio ou tratamento — inspira uma noção perigosamente falsa de liberdade, de emancipação, de desbunde, decerto essa a palavra mais adequada ao que um ramo também ilusoriamente revolucionário da música pop feita e consumida à farta na República da Sunga condena. “Legalize Já”, uma clara referência a um bordão criminoso do Planet Hemp, banda sobre cuja história os diretores Gustavo Bonafé e Johnny Araújo se debruçam numa produção de técnica esmeradíssima, conta com passagens de inquestionável força dramática, mas o que fica à roda do pensamento ao cabo de 95 minutos de filme é o que o poeta pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965) indagava em seu “Gaúcho” (1961). Marcelo Maldonado Gomes Peixoto é carioca de São Cristóvão, o bairro que sedia o Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, dedicado a celebrar a cultura e a arte da gente que Ferreira tanto valorizava, mas continua a encarnar a alma messiânica que jamais teve, como o homem do Pampa estereotipado (estereotipado, frise-se) no poema, muito pelo contrário: drogas ultrajam, escravizam, adoecem e matam. Ferreira reconhecia como poucos os vendilhões do templo, uma peste que não se dobra a venenos e vacinas; o regionalista de Palmares, um dos poucos a encampar sem medo essa corrente no movimento modernista de sua juventude —vigoroso e sólido o bastante para reivindicar uma efeméride artística para chamar de sua, a Semana de 1922 — fazia questão de expor o ridículo dessa gente, de uma erudição firme tal como uma nuvem, que desliza pelo céu ao sabor do vento mais persuasivo. Marcelo sempre voou alto demais.

A estética pela qual optam Bonafé e Araújo é, sem dúvida, a melhor coisa em “Legalize Já”. Na primeira sequência, de roubar o fôlego, Marcelo, como se vai saber pouco depois, preenche um caderno com rabiscos, fragmentos de uma canção que intenta completar quando o batente permitir. A fotografia de Pedro Cardillo, de cores naturalmente esmaecidas com predomínio do branco, deixa os Arcos da Lapa ainda mais cinematográficos — é justamente nessa locação, à noite, que se desenrolam dois dos momentos mais bonitos do filme, quando a instabilidade e a tensão que dominam a vida dos protagonistas arrefecem, e o que se vê combina à perfeição com o que é dito. Em paralelo, o roteiro de Felipe Braga dá a mesma ênfase à história de Luís Antônio da Silva Machado (1967-1994), o Skunk, que trava lutas parecidas às de Marcelo. Os dois não têm quase nada: Marcelo é filho de Dark, um pai que começa a rejeitá-lo também por querer mais privacidade com Marli, a nova mulher; Skunk, nem isso; o primeiro se defende como camelô, vendendo camisetas de bandas de rock na rua; este, vive da generosidade de estranhos; aquele tem um namoro cheio dos impedimentos que relações informais em geral tendem a apresentar, tanto mais graves em razão, claro, da falta de dinheiro; o segundo parece, a uma análise ligeira, assexuado ou do tipo que se deixa arrastar pelas fantasias dos amores de vidro, e essa talvez seja a razão de sua desdita maior, apenas insinuada por uma minudência da ótima direção de arte, a cargo de Joana Mureb. São justamente essas semelhanças em si tão discrepantes que acabam por aproximá-los, como substâncias que a princípio se repelem, mas logo condicionam-se a ocupar o mesmo ambiente.

Renato Góes e Ícaro Silva estão igualmente bem na pele de Marcelo — que só assume o complemento D2 quando da conversa que sela de vez sua sorte — e Skunk, um prestando-se a despertar no outro as qualidades que julgam patéticas ou um indicador de virilidade frágil, esta uma perene fonte de angústia para D2, pelo menos no início. As sequências em que Góes e Silva contracenam, em conversas preliminares sobre o punk dos esquecidos Dead Kennedys, ou em assuntos mais prosaicos a exemplo de como ganhar dinheiro com o que compõem, deixam o filme especialmente saboroso, mas não a ponto de amaciar a hipocrisia do vocalista do grupo de rap rock mais profícua do mercado fonográfico brasileiro, generoso em alimentar o público com tudo o que encontra de mais degradante, expediente que só se perpetua, por óbvio, graças a sua condescendência e ao seu mau gosto. Numa cena quase risível pelo tom farsesco, Marcelo, depois de “vender a alma ao diabo” e tornar-se funcionário de uma loja popular de eletrodomésticos, fala pela boca de Góes que pagode afasta a clientela. Está equivocado, sem dúvida, mas essa uma pequena mostra do que veio a ser em pouco tempo: o ídolo da geração Coca-Cola da letra de Renato Russo (1960-1996), e milionário. Skunk não sobreviveu para dizer o que pensaria do monstro que ajudou a criar.


Filme: Legalize Já — Amizade Nunca Morre
Direção: Gustavo Bonafé e Johnny Araújo
Ano: 2017
Gêneros: Drama
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.