“Shéhérazade” é um filme que mergulha nas entranhas de uma cidade esquecida, revelando uma realidade dura e contraditória. Dirigido por Jean-Bernard Marlin, um conhecedor do ambiente que retrata, o filme captura a essência de uma Marselha pobre, contrastando com a proximidade de uma Paris opulenta. É nesse cenário sombrio que surge uma história improvável de amor.
Em Marselha, a paisagem social é cinzenta e desoladora. Jovens começam a se envolver com o tráfico de drogas ainda crianças, enfrentando um destino incerto e perigoso. Enquanto isso, as jovens são obrigadas a vagar pelas ruas como prostitutas, sob o olhar atento de cafetões que controlam suas vidas. A falta de esperança e o vazio emocional dessas criaturas refletem a decadência da cidade portuária e, por extensão, o fracasso do sistema civilizatório.
Marlin retrata essa realidade com um neorrealismo inovador, especialmente a partir do segundo ato do filme. O roteiro, escrito em colaboração com Catherine Paillé, abandona o viés sociológico inicial e assume um aspecto mais dramático. O diretor faz escolhas estéticas e conteudísticas impactantes, como a utilização de um elenco não profissional, capaz de transmitir a autenticidade e a gravidade do que está sendo retratado.
“Shéhérazade” é uma mistura dos filmes “The Runaway” (2013) e “Something Fierce” (2014). O primeiro é um curta-metragem de sucesso que aborda a história de uma garota perdida, à margem da sociedade, que encontra amizade em um amigo igualmente desafortunado. O segundo é um documentário que acompanha a vida de Jamal, um adolescente envolvido em uma espiral de reformatórios, sem perspectiva de mudança.
O filme começa com um belo mosaico de imagens de arquivo, retratando a chegada dos imigrantes norte-africanos na França no início do século 20. Em seguida, somos apresentados a Zach, um ex-menino de rua de dezesseis anos que acabou de cumprir uma sentença por assalto à mão armada. Dylan Robert, que compartilha uma história de abusos e negligência com seu personagem, traz uma interpretação visceral e autêntica.
Após ser libertado, Zach é presenteado por seus amigos com uma prostituta chamada Shéhérazade, interpretada por Kenza Fortas. O encontro inicial é desajeitado, típico de adolescentes que acham que sabem tudo sobre a vida. Embora nada aconteça naquela noite, a curiosidade de Zach é despertada e ele começa a vislumbrar a possibilidade de um romance. Ele passa a morar no quarto que Shéhérazade divide com Zelda, uma mulher transexual sensível, interpretada por Sofia Bent.
O relacionamento entre Zach e Shéhérazade é incomum e turbulento. Ambos são atormentados pela força opressiva do ambiente ao seu redor, que os impede de buscar uma vida melhor. Enquanto Shéhérazade continua se prostituindo, orgulhosa de sua profissão, Zach se envolve em brigas e rivalidades perigosas.
Apesar de suas circunstâncias adversas, o amor começa a brotar entre eles. No entanto, eles são confrontados com a dura realidade de que não podem pertencer exclusivamente um ao outro. Zach se vê apaixonado por uma mulher que pertence a todos e precisa enfrentar a humilhação dessa situação.
O filme, que se desenvolve predominantemente pela perspectiva masculina, carrega em seu título o nome de Shéhérazade, uma personagem secundária, mas vital para a trajetória de Zach. Essa escolha feita por Jean-Bernard Marlin ressalta a importância do amor e da conexão humana, mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.
“Shéhérazade” é um retrato poético e dolorido de uma realidade marginalizada. Ao explorar a complexidade das relações humanas em meio à decadência social, o filme levanta questões sobre a natureza do amor e da esperança. Através de atuações autênticas e de uma direção sensível, Marlin nos faz refletir sobre as condições em que vivem muitos indivíduos e sobre a busca por redenção em um mundo hostil.
No final, “Shéhérazade” nos mostra que, mesmo nas sombras de uma cidade esquecida, o amor pode encontrar seu caminho e oferecer uma luz de esperança. É um lembrete de que, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, a conexão humana e a busca por um futuro melhor são forças poderosas que podem transcender as barreiras impostas pela sociedade.
Filme: Shéhérazade
Direção: Jean-Bernard Marlin
Ano: 2018
Gêneros: Drama
Nota: 9/10