Cada família tem uma organização muito própria, onde o amor, por exemplo, só pode entrar se reivindicado e aceito por todos os membros do clã; tomando-se o gosto que apenas um desenvolve quanto a partilhar o pode haver em si de melhor, enquanto míngua dia após dia sua chance de ser também acolhido, cuidado, estimulado, protegido — não obstante diferenças em assuntos pontuais, logo acertadamente superadas —, o convívio em meio a gente de cujo sangue brotamos ou entre aqueles cuja proximidade de nós só se manifesta diante do espelho transforma-se num inferno, difícil, às vezes impossível, de se bater.
Os vários sentimentos, divergentes, mas complementares, que marcam a vida do mais simples dos homens; os desafios irracionais que o vulpino tempo esconde; os choques; as mágoas; o naufrágio da razão; a má saúde do corpo: todos estamos sujeitos a enfrentar tais circunstâncias, que ficam menos intoleráveis quando dispomos da ajuda desinteressada e até insistente de quem nos rodeia — ou deveria nos rodear. Anthony, o velho senil de “Meu Pai”, confuso, perdido num apartamento onde as coisas mudam de cor, de formato e de posição diante de seus nossos olhos — e dos nossos precisa da comiseração da família que lhe resta, a filha Anne, que por seu lado já não suporta mais e precisa tratar do que ainda sobra da própria vida. A adaptação do espetáculo do francês Florian Zeller, ganhador do Prêmio Molière de Melhor Peça de 2014 e dirigida pelo próprio dramaturgo, decerto é dos cinco títulos que escolhemos para essa lista, todos à disposição do assinante da Netflix, o mais simbólico das dificuldades tão intrínsecas de se estar no mundo, mais ou menos só, e o mais poderoso em sua singeleza por ser tão palpável a qualquer um. Os outros quatro, claro, têm seus encantos, mas em “Meu Pai”, Zeller condensa dores e últimas ilusões de felicidade de um homem frágil, doente, pássaro exótico há muito retirado do jardim da existência ansiando por ter para onde voltar.
Os filmes vêm elencados por ordem cronológica, do mais recente para o lançado há mais tempo, e alfabética, em caso de empate, e todos nos rogam que exercitemos nosso senso de humanidade antes que seja tarde. Tarde para nós mesmos.
Uma generosa medida de desespero é a matéria-prima de que o turco Onur Saylak se utiliza em “Encurralados”, um desespero particular, daquela ordem que só a severa falta de dinheiro é capaz de trazer das profundezas mais imundas do calejado espírito do homem. Quanto mais o enredo avança, mais ratifica-se a ideia de que as grandes espertezas para se transformar um punhado de moedas numa montanha de ouro implicam preocupações de natureza mais funesta que as da penúria mais inclemente, e muitas vezes a miséria chega mesmo porque convidada pela ganância, inimiga figadal do bom senso.
O drama que aflige o protagonista de “Meu Pai” torna-se mais e mais frequentes em lares de todos os perfis, mas a forma como se enxerga o grave problema — que do doente logo chega a qualquer pessoa com quem tenha o mais tênue vínculo — é que faz com a solução pareça viável ou mude-se de uma vez por todas para o plano da quimera. O diretor Florian Zeller já o havia apresentado nos palcos do Théâtre Hébertot, em Paris, com Robert Hirsch (1925 – 2017) e Isabelle Gélinas. O espetáculo, ganhador do Prêmio Molière de Melhor Peça de 2014, dava sinais de que iria longe já na estreia, num hoje vago setembro de 2012, exatamente por reunir num mesmo espaço diminuto dois atores em plena capacidade de seu ofício e um texto complexo, riquíssimo, cheio de desdobramentos, além da produção impecável.
Dramas de família costumam ser um tiro certo. Justamente por todas as famílias felizes se parecerem é que as histórias que desnovelam o infortúnio de pessoas que se amam, mas que padecem de um golpe com que não contavam exercem um fascínio — ainda que mórbido — junto ao público. Com “Deixe-o Partir” não é diferente. O roteiro, adaptação do diretor Thomas Bezucha para o romance homônimo do americano Larry Watson publicado em 2013 pela Milkweed Editions, encadeia uma sucessão de acontecimentos funestos, um mais rápido que o outro (muitas vezes rápido demais), em que especular-se acerca de um desfecho trágico é quase forçoso. A forma como Bezucha conduz a história, mantendo o vigor narrativo da pena de Watson, autoriza toda a sorte de devaneios, mas só quem manteve contato prévio com a obra do escritor pode saber a extensão da insânia que se abate sobre um casal já entrado em anos, movido por um desejo aparentemente racional, e mesmo esses ficam perplexos como tudo se materializa na tela.
Famílias obedecem a dinâmicas muito particulares quanto à morte, que cedo ou tarde acaba por dobrar a esquina, como se dá com todo mundo. Desde o início, resta evidente que alguma de macabro há de acontecer em “The Lodge”, mas os austríacos Severin Fiala e Veronika Franz conseguem pôr abaixo muitos dos palpites em cenas que nunca dizem exatamente onde podem desembocar. Naturalmente, conforme se vê que alguma coisa discrepa da normalidade mais básica no que toca ao comportamento de uma mãe e seus filhos, e, o mais importante, à maneira como essa mulher amargurada conduz sua relação com o ex-marido e a nova vida pela qual ele optara, qualquer possível surpresa quanto a uma tragédia iminente se enfraquece. Assim mesmo, Fiala e Franz sabem muito bem por onde devem passar a fim de chocar o espectador, ainda que certas decisões pareçam um tanto artificiosas.
O cinema reinventa lugares e épocas ao talante do que lhe exige o público, leia-se o mercado. “Terra Selvagem”, o thriller meio faroeste de Taylor Sheridan, soa como uma tentativa encarniçada do diretor de recobrar a mística de um ambiente e de um tempo há muito superados — lamentavelmente —, o que consegue em parte. Sheridan, a potência oculta nos roteiros de “Sicario: Terra de Ninguém” (2015), dirigido por Denis Villeneuve; “Sicario: Dia do Soldado” (2018), de Stefano Sollima, e “A Qualquer Custo” (2016); de David Mackenzie, passa à direção levando muito do que deixou somente insinuado naqueles filmes e aqui empenha todas as fichas na construção do intricado contorno psicológico de seu anti-herói, um tipo ao qual ninguém fica indiferente.