Filme com Charlotte Gainsbourg, na Netflix, vai te conquistar desde a primeira cena e lavar sua alma

Filme com Charlotte Gainsbourg, na Netflix, vai te conquistar desde a primeira cena e lavar sua alma

A dança da vida não tem regras. Pode-se ter toda a consideração para com os rudimentos de boas maneiras que costumamos receber na infância, mas crescer, tornar-se adulto, ser obrigado a ganhar o pão com o suor do próprio rosto acaba por subverter qualquer ilusão romântica de que os bons sempre vencem. “Samba”, outro dos tantos filmes sobre tomar posse do que o destino nos reserva — e, principalmente, do que fica escondido sob o manto da vergonha, que não resiste por muito tempo —, por mais árduo que seja, é uma história com a qual todos nos identificamos em alguma medida. Lançando mão dos tropos musicais que encaixam com cautelosa organicidade, os franceses Éric Toledano e Olivier Nakache quiçá deixem que um humor quase pueril amenize demais um assunto sobremaneira gravoso. No entanto, eles sabem contornar, no momento certo, possíveis armadilhas, socorrendo-se de atuações quase perfeitas.

O baile para quatrocentos talheres com que Toledano e Nakache abrem o “Samba” presta-se a uma síntese do enredo, mesmo que afetada e com certo viés político que não alcança as devidas notas. Ao passo que uma elite privilegiada se banqueteia, na cozinha, os funcionários, majoritariamente negros, esfalfam-se para que saia a contento. Paulatinamente, os diretores-roteiristas vão entrando num dos pontos nevrálgicos do longa, que puxa consigo ao menos outros dois. Samba Cissé, o personagem-título encarnado com o brilho contumaz de Omar Sy, é negro, mas está na França em situação irregular e não tem a mais pálida ideia nem se um dia volta a seu Senegal de origem, nem se poderá seguir na terra que a sorte (ou o acaso, a depender de onde se tome a questão) escolheu para ele. Como sói acontecer, uma sucessão de péssimas notícias o arrebata e, a partir de então, nem mesmo lavar a louça suja dos jantares suntuosos ele consegue.

Não faria muito sentido trazer a lume temas flagrantemente melancólicos como os assinalados no filme se não houvesse por trás ao menos a intenção de se prometer respiros que garantissem a leveza colateralmente sugerida pelo título. Depois de se estender sobre o cotidiano opressivo de Samba, que volta para casa em vagões de metrô lotados, esquivando-se dos olhares de desconfiança, medo e repulsa dos outros passageiros — a xenofobia contra africanos é uma discussão com que os franceses terão de se haver a sério num futuro muito próximo —, divide um cubículo com o tio, Lamouna, de Youngar Fall, e foge das autoridades num jogo de gato e rato que o coisifica e do qual não se safa, irrompe em sua vida Alice. Provisoriamente afastada do trabalho, a personagem de Charlotte Gainsbourg realiza um trabalho voluntário assessorando gente como Samba, e não é preciso muito para se concluir que os dois, polos complementares de uma mesma solidão, irão se envolver — um lance em especial no centro que isola os forasteiros trata de dirimir qualquer suspeita em contrário, embora faça questão de atropelar a sensatez e o bom gosto. Porém, muito antes que isso aconteça, Toledano e Nakache intercalam boas sequências em que Gainsbourg tem a chance de evidenciar a profundidade de sua anti-heroína, paralisada por acessos de pânico devidos à síndrome de burnout, que lhe exige o uso de medicamentos que congelam a libido.

Tudo leva a crer que o antirromance de Samba e Alice se consuma, depois de um anticlímax que sinaliza para duas tragédias íntimas na já tão sofrida história do personagem central. Por amalgamar tão homogeneamente drama e romance, esse é, sem dúvida, o melhor segmento do filme, que abre espaço para a comédia de fato engraçada com Tahar Rahim na pele do argelino Walid, ou Wilson, como prefere que o conheçam, obcecado com sua ideia enganosa do Brasil.


Filme: Samba
Direção: Éric Toledano e Olivier Nakache
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Comédia/Romance
Nota: 8/10