Bula de Livro: Submissão, de Michel Houellebecq

Bula de Livro: Submissão, de Michel Houellebecq

Meninas e meninos, eu li o romance “Submissão”, de Michel Houellebecq, e temi pelo futuro do Ocidente. Michel Houellebecq é uma espécie de Wolverine da literatura. Ele é o melhor no que faz, mas o que faz não é nada agradável.

Houellebecq é um sujeito detestável em diversos sentidos. Parece cultivar isso como um troféu, exagerando no mau humor, nos trejeitos afetados, na inflexão de voz enfadada, nas expressões esnobes, na higiene duvidosa, no penteado desleixado, no figurino ridículo, na aparência ignóbil, nas opiniões planejadamente controversas. Tudo é escroto demais para ser natural. Incluindo sua recente incursão pelo mundo do cinema pornográfico cult. Se tivesse que apostar, diria que sua persona pública é o resultado da criação de um personagem programado milimetricamente para chocar os carolas e politicamente corretos.

Michel Houellebecq
Submissão, de Michel Houellebecq (Companhia das Letras, 256 páginas)

Se, segundo Quentin Tarantino, a covardia e a falta de jeito de Clark Kent é a crítica do Super-Homem à humanidade, a escrotidão de Houellebecq seria a radicalização dessa crítica. Com o infalível cigarro pendendo toscamente no canto da boca, parece gritar: “não finja que você não sabe que, sem o verniz social, somos iguais”. Sua literatura é uma sessão de psicanálise em que o paciente odeia o analista, despreza e nega suas conclusões, ao mesmo tempo em que sabe que alguma razão o infeliz carrega. Não há zona de conforto em sua obra.

Talvez por isso, Houellebecq é um imenso sucesso. Provavelmente, é o escritor francês mais importante vivo, autor de clássicos contemporâneos, como “Partículas Elementares”, de 1998, e “Plataforma”, de 2001. Mas, sem dúvida, seu livro mais importante, politizado e provocativo é “Submissão”, de 2015. Tratasse de uma distopia. Em um futuro muito próximo, para evitar que os conservadores ganhem as eleições majoritárias, a esquerda francesa alia-se a um partido islâmico dito moderado, permitindo que assumam o poder. Rapidamente, a charia substitui as, aparentemente sólidas, instituições democráticas francesas. Quase não há resistência. Criticar ou se opor é considerado islamofobia. Ninguém quer parecer intolerante. A opção politicamente correta é se submeter. O enredo peca pelo excesso de velocidade no desenrolar das implicações macroestruturais das mudanças, mas guarda certo tom de fábula, o que minimiza o impacto negativo dessas simplificações no conjunto do livro. 

Essa história defende uma tese: a Europa, começando pela França, fatalmente, vai cair, não por fraqueza militar, mas por ter perdido o orgulho por sua tradição, sua história e sua arte. Os europeus vão se entregar ao autoritarismo por pura incapacidade moral de resistir. Não por acaso, o protagonista do romance é um intelectual hedonista, fraco e alienado. Essas características funcionam de modo exemplar na narrativa. Se fosse um homem de fibra não seria um personagem de Houellebecq.

O epílogo de “Submissão” é um estranho final feliz, paradoxalmente, irônico e derrotista. Uma civilização cai para um homem se salvar, ter uma boa segunda vida. Aconteceria de qualquer forma. Por que não aproveitar os espólios da guerra? Um final brilhante e amargo que redime os evidentes problemas de estrutura do livro. Michel Houellebecq é um sujeito detestável, mas é um grande escritor. Talvez um pequeno gênio. Que Alá, o eterno e misericordioso, permita que ele esteja errado em suas profecias. Amém.   

Livro: Submissão
Autor: Michel Houellebecq
Tradução: Rosa Freire d’Aguiar
Páginas: 251
Editora: Alfaguara
Nota: 9/10