Bula de Livro: Ioga, de Emmanuel Carrère

Bula de Livro: Ioga, de Emmanuel Carrère

Trigésimo primeiro (31º) livro lido, em 2023: “Ioga”, do francês Emmanuel Carrère. Em poucas palavras: “Sou um homem narcisista, instável, saturado pela obsessão de ser um grande escritor. Mas é a minha cota, é a minha bagagem, é preciso trabalhar com o que se tem, e é na pele desse homem que devo fazer a travessia.” O livro, um misto de romance e autobiografia, mostra o mergulho visceral e demolidor de Emmanuel Carrère, um dos mais importantes escritores franceses, no inferno da depressão. Decidido a passar dez dias em um retiro de silêncio no interior da França, Carrère tem sua paz quebrada com a notícia da morte de um amigo, no ataque terrorista ao jornal satírico Charlie Hebdo.

De volta a Paris, o aparente equilíbrio emocional do autor, que já durava uma década, é quebrado por uma depressão profunda, que o lança numa descida visceral e acelerada à parte sombria de si mesmo. Consumido pela fadiga e angústia constantes, Emmanuel Carrère é internado no hospital de Saint-Anne.

Seus relatos da internação têm alguns dos trechos mais luminosos, desesperadores e agonizantes da literatura contemporânea: “Eu choro, choro, digo que quero morrer, que sei muito bem que não é trabalho deles me matar, mas suplico que ainda assim me matem. De tanto eu gemer e suplicar que me matem, ou que ao menos apaguem minha consciência, é isso que os médicos fazem, e prontamente. Uma picada, o disjuntor cai, todo mundo some. Tem uma luz acima de mim. Preciso ir até ela. Preciso ir até ela. Não posso perder a saída. Não posso permanecer neste estado intermediário, nesta vida terrível. É preciso que tudo acabe e que o sofrimento termine, definitivamente. Repito diversas vezes com um esforço enorme que ‘eu quero morrer, eu quero morrer’”.

As observações de Emmanuel Carrère refletem não apenas seu estado mental durante o processo depressivo, mas, também, suas percepções desencantadas sobre o amor, a literatura… a vida. Algumas delas, inclusive, soam como vaticínios: “Tudo que é real é verdadeiro, por definição, mas algumas percepções de real têm um teor de verdade muito maior do que outras, e não são as mais otimistas. Acho, por exemplo, que esse teor de verdade é mais elevado em Dostoiévski do que em Dalai Lama.”

A literatura, que já o salvou dezenas de vezes, desta vez já não pode fazer muito, e Carrère tenta se apegar aos últimos vestígios de racionalidade para não se entregar à morte certa que o espreita. E essa travessia é a matéria-prima do livro — sem dúvida, um dos mais belos, assustadores e brutais romances da literatura do século 21: “Você tem razão. O suicídio não é muito bem-visto, mas às vezes é a melhor opção. Abismado, olhei para ele. Se tem uma coisa que um terapeuta de qualquer escola não pode dizer é exatamente isto: que o suicídio é a melhor opção. Depois ele completou: Ou, então, você pode viver.”  Para ler, reler e voltar a ler, sempre que a tristeza bater à porta.

Li o livro pensando no meu amigo Marcelo Franco, em sua odisseia para combater o mostro que o espreita. Nem sempre a solidariedade na agonia vai funcionar, mas sempre é possível pedir: “continue a não morrer”.


Livro: Ioga
Autor: Emmanuel Carrère
Tradução: Mariana Delfini
Páginas: 272
Editora: Companhia das Letras
Nota: 10/10