O filme selvagem e perturbador da Netflix que vai grudar na sua cabeça Divulgação / Alfa Pictures

O filme selvagem e perturbador da Netflix que vai grudar na sua cabeça

“Sob a Pele do Lobo” confirma a tese de que a solidão é a única coisa perene na História. Seja qual for a época, sempre existem tipos que só na companhia de si próprios encontram algum refúgio, cada vez mais necessário, porque o excesso de si mesmo requer espaço. Quando se dá conta — e isso raramente acontece —, o solitário já ocupou toda a casa, toda a rua, parte para ocupar toda a cidade e acaba achando que o mundo é demasiado pequeno para seu deserto interior. O longa de estreia do diretor espanhol Samu Fuentes presta-se a descrever o cotidiano banal de um homem completamente adaptado ao meio em que vive, e esse é o seu mal. Estar há tantos anos no mesmo lugar, um pueblo desabitado nas montanhas espanholas, na fronteira entre o país e a França, minou-lhe a humanidade, e o muito pouco que lhe restou o incomoda. Fuentes toma o pressuposto de estar lidando com um anacoreta inveterado para projetar nele anseios que dizem-nos respeito. Em meio a multidões assombrosas, também se pode estar miseravelmente só, rodeado por gente que não nos significa nada.

O filme trata a solidão de Martinon sob essa perspectiva. O tipo agressivamente misantrópico incorporado por Mario Casas na trama já perdeu a noção de há quanto tempo mora no casebre de pedra no alto de uma montanha em alguma quadra do século 19, ou seja, está sozinho mesmo, sem nenhum contato com a civilização, que começa muito além de seus muros. A vida para Martinon se resume a suprir suas necessidades mais primitivas e caçar lobos, atividade de que tira o sustento e que, ironicamente, o faz deixar seu eterno retiro de quando em quando, uma vez que tem de se deslocar até uma vila para oferecer a pele que arranca dos animais. Tornara-se, na verdade, também ele um lobo, ora mais vulnerável, ora mais colérico, cujo grande talento mesmo é seguir vivendo nas condições que lhe parecem as ideais para a sua natureza. Numa dessas viagens, Severino, o taberneiro vivido por Kandido Uranga, passa a saber que o protagonista não dispõe mais do cão que o ajudava nas caçadas, e sugere que arrume outro, sugestão que ele prontamente rechaça: cachorros requerem atenção e muito treino até que fiquem adestrados e possam lhe servir de assistentes. Possivelmente fosse o caso de arranjar uma companhia feminina, ideia a que ele não adere logo: a montanha não é lugar para mulheres, muito menos para crianças. Mesmo assim, o personagem de Casas acaba propondo ao pai de Pascuala, com quem já mantém encontros furtivos a algum tempo, que lhe venda a moça, num tempo em que negócios dessa natureza — que ainda acontecem, mormente em sociedades mais atrasadas de boa parte do Oriente Médio e da África — não causavam espécie a ninguém. Em sua breve passagem pela narrativa, Ruth Díaz é capaz de imprimir a sua personagem a agonia essencial de Pascuala, que gostava de estar com Martinon, mas não pensava se tornar sua esposa. As sequências partilhadas por Díaz e Casas são quase destituídas de algum texto e se revestem da beleza crua que os dois, tipos deslocados, contêm, mas uma reviravolta faz com que se separem. É o momento em que Adela ocupa essa lacuna; a irmã de Pascuala, também vendida pelo pai, adapta-se melhor à montanha e a Martinon, precisamente por se intimidar com seu aspecto pouco civilizado. A personagem, interpretada por Irene Escolar, se adequa à perfeição à nova vida e à realidade de ser mera substituta da irmã, ao passo que demonstra a sagacidade necessária para entender que pode dobrar Martinon e fazer a vida daquele homem menos bestial. Aos poucos, Fuentes conduz a trama de modo a levar o público a crer que o caçador está menos imerso em suas próprias dores, mais sensível, quiçá até apaixonado, ou se apaixonando, por Adela, que por sua vez não parece indiferente à presença do marido. Até que novos eventos se sucedem, Adela tem uma reação intempestiva e um novo acontecimento trágico vem à tona e se impõe sobre a jornada do casal.

Casas é hábil ao vencer a falta de diálogos e de parceiros de cena, e se em alguns momentos parece um tanto mais perdido do que o personagem lhe pediria, a culpa é do roteiro, efetivamente fora de controle em algumas passagens. Como que tomado por algum espírito da floresta, o ator encara o desafio de virar uma forma de vida entre homem e bicho, comendo grotescamente, privando-se da fala, recurso fundamental em seu ofício, e absorvendo assim o lado fera de Martinon, talvez valendo-se da interpretação oscarizada de Leonardo DiCaprio em O Regresso (2015), de Alejandro González Iñárritu. A fotografia irretocavelmente elaborada de Aitor Mantxola — que ressalta a onipresença da neve a tal ponto que às vezes se pensa que o filme fora rodado em preto-e-branco —, é um recurso técnico-estilístico que estupefaz a audiência, a essa altura enfeitiçada pelo que “Sob a Pele do Lobo” não diz. Samu Fuentes é dado a escolhas arriscadas, que, esperássemos ou não, se provam certeiras.


Filme: Sob a Pele do Lobo
Direção: Samu Fuentes
Ano: 2017
Gênero: Drama
Nota: 8/10