O filme louco e delirante da Netflix que te manterá com os olhos grudados na TV e o coração saindo pela boca Divulgação / Netflix

O filme louco e delirante da Netflix que te manterá com os olhos grudados na TV e o coração saindo pela boca

Um casal expõe sua vida íntima na cama em que os dois dormem. Entre uma e outra farpa, a mulher diz que será mãe — do filho do irmão do marido, morto recentemente. Essa cena não se refere aos protagonistas de “The Trip”, que num jogo metalinguístico apresenta uma parte irrisória do que se vai ver ao longo dos próximos 110 minutos. Lars, de Aksel Hennie, é o diretor de dramalhões de segunda linha que corta a ação dos atores e vai para casa, a fim de se encontrar com a mulher, Lisa, a atriz fracassada vivida por Noomi Rapace. Na sequência, Lars e Lisa, (a aliteração um tanto jocosa é mais uma gracinha do roteiro) fazem as malas: irão passar alguns dias no chalé que o pai de Lars, Mikkel, personagem de Nils Ole Oftebro, deu ao filho, tentando remediar o casamento, que vem enfrentando uma crise. O que o norueguês Tommy Wirkola começa a esclarecer é que o plano de Lars e Lisa não é resgatar o sentimento que já podem ter nutrido um pelo outro, mas visa a atingir objetivo diametralmente oposto. Depois de uma longa agonia, os protagonistas chegaram à difícil conclusão de que só a morte pode dar um jeito no problema deles, que vai além da mera incompreensão entre duas pessoas que já se amaram, mas que estão a ponto de cometer a maior loucura de que poderiam ser capazes.

Sem explicação, Lars e Lisa têm a mesma ideia: atrair o cônjuge para a cabana, num lugar afastado, e matá-lo, no intuito de receber o dinheiro do seguro de vida — argumento também usado pelo argentino Miguel Cohan em “La Misma Sangre” (2019). Pode ser que, no fundo, houvesse entre eles tanta afinidade que até nessas circunstâncias fossem acometidos da mesma insânia, o que acaba se tornando um grande impedimento para o sucesso de uma ou do outro. E a força do roteiro de Wirkola, John Niven e Nick Ball está em suas mudanças bruscas, provocadas justo pelo insólito da coincidência. A partir do momento em que se desenrolam mesmo as intenções criminosas de Lars e Lisa — primeiro dele, que conta com a ajuda do bobalhão Viktor, ex-empregado do casal, de um impagável Stig Frode Henriksen —, o diretor põe a mão na massa com gosto, valendo-se de enquadramentos característicos dos suspenses mais renomados, em especial os que captam o panorama dos atores em espaços pequenos, graças a câmeras ágeis e posicionadas nos lugares precisos — e, ainda assim, sempre escapa uma gotícula de sangue na lente, o que pode se constituir tecnicamente um defeito, mas tem inegável apelo estético. Com as cartas todas à mesa, Lisa sabendo o que Lars pretende e vice-versa, a narrativa parte para um saboroso jogo de gato e rato, em que a ação privilegia ora o personagem de Hennie, ora Lisa, proporcionando ao espectador momentos de comédia involuntária em meio à tragédia que sempre ameaça irromper, à guisa de “Atração Fatal” (1987), de Adrian Lyne. Como “The Trip” assume seu lado freak com gosto, a caçada se presta a pano de fundo de uma lavagem de roupa suja sem perdão condescendência de parte a parte, na qual os protagonistas seguem acusando os podres um do outro, até que se esgota a margem para novas trapalhadas e aflora o segundo ato, marcado pela entrada de três coadjuvantes que personificam o plot twist definitivo do longa.

Trata-se de Dave, Petter e Roy, presidiários em fuga que haviam se escondido no casebre três dias antes, a fim de despistar a polícia. O surgimento do trio da azo às situações que começam a encaminhar a trama para o final surpreendente enquanto cada um dos tipos desenvolve seu respectivo arco dramático sem pressa. Petter (Atle Antonsen), o líder do bando, conduz a cena até que se absorva a entrada dos três na história, escolha acertada do diretor. O que se desenrola a seguir é a porção mais dramática do filme, com a iminência da violação de Lars por Dave (Christian Rubeck), ajudado por Roy (André Eriksen). A agonia do marido desperta na personagem de Rapace um laivo de compaixão, e ele escapa. A propósito, Aksel Hennie é o grande nome em “The Trip”. Depois de imprimir ao personagem a ideia de um sujeito presunçoso, arrogante e egoísta a ponto de nem se incomodar com o fato de a mulher nunca sentir prazer durante o sexo, Hennie vira a chave e se investe do aspecto de mocinho ao elaborar um arrojado plano para tentar enganar os invasores, que se só prova bem-sucedido graças ao reaparecimento de Mikkel na trama, que por sua vez se dá por causa do chamado de Hans (Tor Erik Gunstrom), morador das imediações do chalé. Tem início uma nova série de enfrentamentos entre Lars, Lisa e agora também Mikkel e a gangue chefiada por Petter, que acaba por sucumbir — mas não antes que a dupla de improváveis heróis passe por toda sorte de apuro, saia machucada na carne e no espírito, mas lúcida o bastante para fazer da terapia de casal mais sangrenta da história do cinema a saída para a questão que dá origem ao conflito fundamental do enredo.

Cheio de detalhes, “The Trip” vence pela persistência e, para os mais tolerantes, se revela uma grande história. Aludindo à produções do gênero, a exemplo de “Kill Bill” (2003), de Quentin Tarantino, mas dotado de personalidade própria, o filme de Wirkola fala da dor e da delícia da vida a dois, com leveza em alguns momentos, pesando a mão em outros, mas sempre de forma a defender um ponto de vista. O amor é lindo, mas fere. O amor fere, mas é lindo.


Filme: The Trip
Direção: Tommy Wirkola
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 9/10