Nem um filme na Netflix te impactará tanto: o diamante do cinema que você não assistiu Distribuição / Film District

Nem um filme na Netflix te impactará tanto: o diamante do cinema que você não assistiu

Fugir é a profissão que um motorista sem nome — e que parece não ter vida também — exerce com desvelo, contando com a perícia ao volante de um Mustang GT 5.0. Se durante o dia exorciza seus fantasmas valendo-se da adrenalina que sobra depois da jornada como dublê de filmes de ação, à noite ele faz com que seus demônios reencarnem, a fim de faturar um extra. Com uma vida tão atribulada, não deveria haver lugar para tédio, muito menos para aquela sensação entre o desalento e a zanga que se apossa do cotidiano dos simples mortais, certo? Bem, não é exatamente assim que as coisas se dão para o personagem de Ryan Gosling em “Drive” (2011). Fiel à tradição de heróis tortos do cinema, personificada por tipos como o homem sem identidade — mas com um apelido boçal, Monco — de Clint Eastwood em “O Pistoleiro sem Nome” (1960), e Travis Bickle, vivido por Robert De Niro em “Taxi Driver” (1976), o protagonista do filme do dinamarquês Nicolas Winding Refn existe, resiste, mas não vive. Sem família, amigos, uma carreira séria com que justificar seu estar no mundo, o Motorista é um farsante num carrossel meio espalhafatoso cuja profusão de cores e luzes contrasta com a monotonia de seus movimentos. Degredado na própria existência, a vida para ele é um paradoxo. Ao passo que acelera, deixa para trás sua história, o falso bom-moço perdido em si mesmo sem conseguir se encontrar nunca.

O personagem encarnado por Gosling só existe quando cotejado com a profusão de figuras que orbitam a sua volta, como espectros que se assanham à cata de um corpo por meio do qual voltem a este plano. Shannon, interpretado por Bryan Cranston, lhe conseguira emprego em sua oficina há alguns anos quando ele surgira lá, misteriosamente, caído do azul, vindo sabe Deus de onde; Bernie Rose, de Albert Brooks, é um conhecido de Shannon que num lance pontual do filme passa a exercer sobre ele um poder do qual não pode escapar; e Nino, papel de Ron Perlman, é só um capacho de Rose, mas tem a seu favor ser tratado com muito mais consideração que o Motorista. Essa avalanche de elementos desconcertantes da personalidade com que o anti-herói de Gosling se defende da vida (e da morte) é destacada por Refn em manobras calculadas com sabedoria, deixando evidente a razão do espectador reagir-lhe com tamanha simpatia: à diferença dos outros, o Motorista não tem certeza de nada, senão de sua inferioridade. Pela outra frente, ele dispõe da vizinha, Irene, de Carey Mulligan, por quem se apaixonara numa das ocasiões em que tomaram o elevador juntos, um amor meio impossível — e que efetivamente não se realiza em sua plenitude —, uma vez que continua casada com Standard Gabriel, o assaltante de bancos prestes a ganhar liberdade condicional vivido por Oscar Isaac. Irene e Gabriel são pais de Benicio, de Kaden Leos, por quem ele logo se afeiçoa, a seu modo casmurro, mas sincero. Quando Gabriel deixa a prisão, o Motorista teme represálias por ter se aproximado de Irene, mas o que recebe é uma proposta de negócio. Ávido por recuperar o tempo perdido, o bandido o tenta com a oferta de partilharem um milhão de dólares se a empreitada der certo, o que só poderia acontecer se a quadrilha se fiasse num condutor com o seu tirocínio, largamente habilidoso em contornar eventuais impedimentos juntando seu talento à performance sempre irretocável do Mustang. Nesse ponto, a história dá um cavalo de pau ainda mais brusco em direção a sua natureza violenta, e o diretor sobrecarrega o protagonista com um novo fardo, obrigando-o a deixar seu estoicismo de lado se quiser preservar a mulher cujo amor não consegue ter para si e o filho dela, que a essa altura já julga seu também. Por tudo quanto se disse neste parágrafo, pode-se inferir que Hollywood mantém em voga a noção de que produções noires devem se concentrar não em quem está no centro do palco, mas naqueles tipos que orbitam ao seu redor, técnica desenvolvida por Gay Talese meio por gênio, meio por necessidade quando incumbido pela revista “Esquire” de traçar o perfil do cantor Frank Sinatra (1915-1998), em 1966.

Do ponto de vista técnico, os malabarismos de Ryan Gosling ao volante do Mustang, um coadjuvante que rouba a cena, são impecáveis. Essas sequências remetem o espectador à noção de caçada; o Motorista é um homem que persegue encarniçadamente um propósito para sua vida, sendo também ele acossado, por ela, por quem se lhe atira no caminho, por si mesmo. “Drive”, cujo roteiro foi escrito pelo irano-britânico Hossein Amini, é um filme que sabe que o vigor do protagonista está justamente em seus silêncios, porque seu entorno já é caótico. O Motorista so encontra asilo em si mesmo, e esse é o único lugar em que a vida lhe consente a permanecer. No princípio do artigo, mencionei um pretenso vínculo entre Clint Eastwood e Robert De Niro, mas retiro o que disse. Ryan Gosling consegue ser um ator muito mais versátil do que os dois veteranos, sinônimos de cinema desde sempre. Talvez o que os una seja o carisma, mas é impensável Eastwood como cabeça de elenco num musical, como Gosling atrevidamente o fez em “La La Land” (2016), dirigido por Damien Chazelle, ou mesmo De Niro liderando uma produção como “Namorados para Sempre” (2010), de Derek Cianfrance. “Drive” tinha tudo para ser só mais um macho movie, com carros, pancadaria, tipos marginais — embalados por uma história decerto invulgar —, mas Gosling é, para dizer o mínimo, bastante persuasivo quanto a nos levar a crer que a vida de seu Motorista é de fato uma pedreira, ainda que suavizada diante de uma ou outra simples promessa de felicidade.


Filme: Drive
Direção: Nicolas Winding Refn
Ano: 2011
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10