Últimos dias para assistir na Netflix a um dos filmes mais angustiantes e perturbadores da história do cinema Divulgação / Constantin Film

Últimos dias para assistir na Netflix a um dos filmes mais angustiantes e perturbadores da história do cinema

Os momentos verdadeiramente grandiosos da vida parecem exalar uma fragrância única, inconfundível, que vai se misturando aos ambientes como música, deixando no ar um rastro de mistério, de beleza e de eternidade. Em “Perfume — A História de um Assassino”, Tom Tykwer consegue a façanha de descrever uma história tão sinistra como fascinante com o mesmo preciosismo do enredo original, dando toda a ênfase, por óbvio, às imagens, encadeadas de modo a reconstituir etapas muito pontuais da vida de um homem à beira de uma sucessão de colapsos.

É nítido o empenho de Tykwer quanto a revelar cada mistério a seu tempo certo, mantendo a aura noir do romance publicado pelo alemão Patrick Suskind em 1985; por outro lado, o diretor lança mão de algumas ideias excêntricas de seu roteiro, elaborado com a ajuda de Andrew Burkin e Bernd Eichinger, a fim de justamente redobrar a figura deslocada que protagoniza a trama, feita de perversões e um estranho dom.

Na introdução, figurantes presos a grilhões oferecem uma noção do que era a vida na França do século 18, e a partir de então, “Perfume” faz uma imersão mais e mais perturbadoramente detalhada de Paris em 1738, um ano como qualquer outro, ao menos até 17 de julho.

O parto do quinto filho de uma peixeira, em meio à onipresente imundície da capital francesa seis décadas antes do movimento que defenestrou a monarquia absolutista de Luís 16 (1754-1793), ao mesmo tempo em que realça o caos generalizado em que a Europa estava atolada também principia a listar os elementos com que o diretor traça o intrincado perfil do personagem que encabeça o filme. A escatologia é um recurso de primeira necessidade, ao menos no primeiro ato, para que o público absorva, quase literalmente, a jornada de Jean-Baptiste Grenouille, uma criatura invulgar, para o bem e para o mal.

O pequeno Jean-Baptiste escapa de ser deixado na sarjeta por pouco e essa parece a cena que guia o trabalho de Ben Whishaw pelas duas horas em que está em cena. Whishaw deixa que a vilania de Grenouille aflore muito parcimoniosamente; na verdade, Tykwer cozinha em fogo brando a potência da natureza diabólica do personagem, que sobrevive a negligência da mãe, mas não consegue desviar de seu fado desditoso e acaba parando no orfanato da madame Gaillard, de Sian Thomas.

Franck Lefeuvre incorpora as passagens em que o protagonista surge quase inocente na pele de um garoto travesso, mas muito longe do que virá a ser. A edição de Alexander Berner não dedica muito tempo a dissecar o Grenouille menino; entretanto, seu intérprete na fase adulta tira de letra qualquer obstáculo à coesão da narrativa, valendo-se de colegas igualmente talentosos.

O diretor elabora a autodescoberta de Grenouille, que justifica o título, depois de sua passagem pela loja de Giuseppe Baldini, o mestre perfumista de Dustin Hoffman. Agora decadente, só mais um dos doze boticários de Paris, Baldini já foi requisitado por toda a aristocracia europeia e pena fustigado por uma velhice entre definida por renúncias e precarizada, magoado com o ostracismo e incapaz de se conformar com o sucesso de um jovem profissional, responsável pela fórmula de um tal Amor e Psique, cujo segredo ele tenta desvendar a todo custo. Generoso, Hoffman entra e sai de cena com a classe habitual depois de ter sua parte em lances memoráveis do filme ao lado de Whishaw.

Vencido esse tomo de “Perfume — A História de um Assassino”, Tykwer volta a posicionar Grenouille no centro do palco, dando ao andamento o ritmo necessário para que o monstro rompa o ovo e sofistique sua técnica macabra até que sobrevenha o encerramento e tudo quase torne ao que era no princípio, com um Jean-Baptiste enganosamente angelical.


Filme: Perfume — A História de um Assassino
Direção: Tom Tykwer
Ano: 2006
Gêneros: Thriller/Drama
Nota: 8/10