Alguns filmes têm o dom de subverter o postulado dos postulados em qualquer narrativa e se organizam sem a necessidade de um eixo muito bem definido, e por conseguinte não se pode cravar sem ampla margem de erro que conflito supera outro em importância, profundidade dramática, vastidão de ideias, calor das emoções. Ao passo que uma trama cresce, já desponta outra em tudo disposta a tomar-lhe os holofotes, e por sua vez uma terceira já está em gestação, cada qual abrindo uma trilha por onde o enredo vai caminhar. “À Espreita do Mal” é uma história em que a ação se desnovela sob variados enfoques, tudo ao mesmo tempo, e ninguém se perde, se desorienta e muito menos se entedia. Um primeiro tratamento prioriza o sumiço de um garoto de doze anos, modalidade criminosa perpetrada com frequência cada vez maior e em velocidade espantosa, mormente numa cidadezinha pacata, mas que já vivera dias de terror antes. Arguto, o diretor Adam Randall atenta para a grande oportunidade que aos poucos vai surgindo e saca do roteiro de Devon Graye a figura do detetive Greg Harper, nomeado pelo departamento de polícia local para investigar o caso, mas o personagem de Jon Tenney não é exatamente o homem certo para a tarefa.
O descompasso no casamento de Harper e Jackie é o argumento de que Randall precisava a fim de esconder os grandes mistérios do longa. Jackie, vivida por Helen Hunt, confessou um adultério recente, e o casal, junto com o filho, Connor, de Judah Lewis, até parece dedicado a superar o trauma, mas não tem ideia de como fazê-lo. À escalada de tensão são acrescentados níveis mais altos conforme episódios aparentemente desconexos tornam-se parte da rotina dos Harper. Um telefonema de Jackie desencadeia no marido fúria tão desproporcional que ele acaba lançando o aparelho contra a janela do quarto — é esse o ponto de desajuste em que está seu relacionamento com a esposa. O texto de Graye insinua que ele solicita o reparo da avaria e quando o vidraceiro aparece, já não está mais em casa. O homem faz o serviço e estava para sair quando Jackie, que havia voltado, cruza com sua figura ameaçadora no corredor. Ele se identifica e diz que sua entrada no imóvel fora autorizada por uma garota, que se apresentou como filha do casal — ou seja, conclui-se que o detetive pagou a infidelidade da terapeuta com a mesma moeda.
O trabalho de Graye, aliado à direção acurada de Randall, nunca prescinde da sutileza e o verbo que eles conjugam mais assertivamente, até dada altura, é insinuar. O jogo que o espectador pratica consigo mesmo, de arquitetar possíveis cenários que expliquem o desdobramento dos enigmas que se apossam de “À Espreita do Mal” só não é mais estimulante porque não vence a barreira da imaginação, e o que se confabular é muito mais perturbador do que aquilo que de fato se assiste — o que sói ocorrer muito assiduamente, sobretudo no cinema, diga-se. Tivesse o filme embarcado nessa de bota e espora, valendo-se do efeito Rashomon a fim de apresentar as versões de cada personagem para as situações nonsense que se espraiam por todo o enredo, o mote central seria muito mais bem assimilado, e a história não ficaria tão falta de sentido em passagens nevrálgicos. A estratégia de Randall não se perde por completo, no entanto, graças ao elenco carismático, que dispõem de elementos técnicos essenciais num filme dessa natureza. O diretor de fotografia Philipp Blaubach sabe perfeitamente quando é hora de subir a luz, orientando o público sobre a perspectiva de resolução de um dos anticlímax, e nos lances em que apela para tons sombrios, como o azul-cobalto ou mesmo o negro profundo, quase absoluto, salienta que algum vácuo permanecerá ativo no contexto.
Sob o ângulo da dramaturgia, Helen Hunt, que dominara o longa até pouco mais do segundo ato, é forçada a ceder espaço, em especial para Libe Barer e Owen Teague. Os dois surgem na narrativa para pôr fim ao primeiro mistério de “À Espreita do Mal”, tornando-se onipresentes e permanecendo até o desfecho, instante em que vem a lume a maior reviravolta do filme. O arco dramático dos dois, lamentavelmente, fica comprometido a certa altura — há sequências em que Randall parece querer claramente correr um pouco —, mas Mindy e Alec desembarcam no longa bem a tempo de abastecer a história com novas discussões. É por meio deles que o público toma pé da miséria emocional que se oculta nos muitos cômodos daquela casa, tão luxuosa que faz com que pareçam crianças num parque de diversões. Essas cenas, silenciosas e reveladoras, servem para dar outras nuanças e outros caimentos à toxicidade que se espalha em qualquer um que habite o palacete, os dois intrusos, inclusive.
O casal de marginais toma parte do dia a dia da família e a decisão do anarquista Alec quanto a interferir diretamente nas vidas dos anfitriões — embora tenha sido Mindy a desencadear o processo, uma vez que resolvera atender o vidraceiro —, ligando a televisão mesmo quando Jackie a desativa e fumando no beiral do telhado, só de farra, termina por atirar o filme no caos interminável em que a narrativa mergulha, com as explicações sobre o desaparecimento das crianças, apresentado no prólogo, do jeito mais enérgico que se poderia imaginar. A catalisação da ideia de dois indivíduos, um mais niilista que o outro, que se instalam nos vãos de uma família e passam a explorá-la — base de “Parasita” (2019) de Bong Joon-ho — até que sejam fundamentais para que se vislumbre alguma saída para um cenário tão doentio cala fundo ao aludir à máxima de que de perto ninguém é mesmo normal, e tanto pior: muitas vezes pode ser um psicopata que passa por cima de qualquer ideia de princípio e de limite a fim de saciar suas perversas vontades .
Filme: À Espreita do Mal
Direção: Adam Randall
Ano: 2019
Gêneros: Suspense/Terror
Nota: 9/10