Caubóis são uma das instituições mais sólidas e respeitáveis dos Estados Unidos, e “Silverado” é um dos tantos filmes que reafirmam o axioma. No seu primeiro século de vida, quando aquela nova nação ao norte do rio Grande lutava para se estabelecer como uma República federativa verdadeiramente democrática, em que os treze estados originais deveriam, por evidente, observar o que estava disposto nas então quinze emendas de sua Carta Magna, mas tinham autonomia para decidir segundo suas próprias necessidades, não se pode negar a fragilidade das leis, o menoscabo do cidadão comum em acatá-las e a balbúrdia fundamental de que resultava todo esse processo, desafio que o novo país da América deveria superar a fim de provar-se de fato digno de ter pegado em armas ao longo de sete anos, entre 1776, ano em que declarou sua independência da metrópole inglesa de maneira unilateral, e 3 de setembro de 1783, quando sua vontade de ser livre os catapultou à vitória e se viram, afinal, livres do domínio de Jorge 3° (1738-1820).
Esse caos que se espraia por todas as camadas da sociedade americana do século 19, ou seja, muitos anos depois da luta pela independência, sem restrições quanto ao dinheiro, à fé, à origem e, especialmente, à cor da pele, é a matéria-prima de que Lawrence Kasdan se vale a fim de relembrar invasões de terra, roubo de gado, famílias que se esfacelam, mulheres que se prostituem e jovens sem esperança. Na introdução, Kasdan aproveita para situar o público no cenário agreste e sedutor do sudoeste da Califórnia, que pretende deslindar em pouco mais de duas horas. Não há muito mais do que já mostraram produções-símbolo do gênero, a exemplo de “Joe Kidd” (1972), dirigido por John Sturges (1910-1992) ou “Três Homens em Conflito” (1966), quiçá o mais complexo, rico e cativante enredo de faroeste já levado à tela, façanha, claro, de Sergio Leone (1929-1989), decerto o realizador mais criterioso que o western já conheceu. Nada mal para um cineasta famoso por comédias românticas do quilate de “Surpresas do Coração” (1995) ou dramas bem-humorados como “O Reencontro” (1983), além, claro, pelo roteiro de “Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida” (1981), de Steven Spielberg.
A propósito de roteiro, Lawrence e o irmão Mark dispõem de seus personagens com toda a serenidade — até que o aço comece a estalar. A clássica sequência da travessia a cavalo de um curso d’água caudaloso e com palmo e meio de profundidade esconde muito do que o diretor quer com “Silverado”, que vai se revelando, a despeito das fórmulas mais ou menos surradas, um filme refrescante. Gradativamente, vai avultando um mistério em torno da figura de Paden, o forasteiro encontrado seminu e desfalecido na estrada que conduz ao povoado onde o oeste distante respira. Ele é Leavenworth, não se sabe se no Kansas ou em Washington, estado do noroeste americano, mas em um ou outro caso, andou muito até acabar caindo ali. Kevin Kline capta a aura de segredos obscuros e inadequação de seu personagem, e cenas como a que registra Paden esforçando-se por se ajustar ao novo habitat, tentando comprar uma boa arma, mas levado a se contentar com uma pistola de segunda mão encerram uma comicidade involuntária que nos deixa mais compadecidos que vexados com a situação — para não mencionar a sempiterna paranoia armamentista só americano tranquilo, apenas sugerida aqui, por natural.
Kasdan desanuvia um pouco a narrativa acerca do anti-herói de Kline abrindo espaço para Jake, o irmão dado a conquistas amorosas fugazes e inconsequentes vivido por Kevin Costner. Fica no ar uma possível coincidência no reencontro dos dois, Paden vagando pelo mundo, desesperado à cata de uma razão para deitar raízes, ao passo que o personagem de Costner não pode alimentar seu espírito aventureiro, ao menos temporariamente. “Silverado” toma a dimensão de uma bem fundamentada crítica de costumes com a entrada em cena de Danny Glover como Mal Johnson, o caubói negro que de pronto experimenta o racismo dos mandachuvas da cidade no saloon de Estela, da oscarizada Linda Hunt, a presença mais luminosa do filme. Esse primeiro arco central se fecha com Emmett, uma espécie de doido sábio de Silverado, performance comovente de Scott Glenn.
O diretor é hábil em transitar de uma para outra subtrama, denunciando xerifes desonestos, enaltecendo bartenders amigáveis, glorificando moças bonitas e inteligentes, arquétipo da mulher perfeita e disputada a ferro e fogo num mundo cão feito aquele, onde é mais fácil achar ouro na rua que um homem digno. “Silverado” veio à luz numa época em muito aspectos semelhante à desdobrada por Kasdan em seu filme, e seus quatro cavaleiros do Apocalipse conseguem fazer com que a audiência se sinta saudosa de um tempo decerto muito mais duro, mas também de muito mais fácil compreensão, com bandidos e mocinhos em seus respectivos quadrantes. Mas a vida é mesmo essa arena poeirenta e sem ordem.
Filme: Silverado
Direção: Lawrence Kasdan
Ano: 1985
Gêneros: Western/Comédia/Aventura/Ação
Nota: 8/10