Um dos suspenses de terror mais perturbadores e impactantes do cinema está na Netflix e não te deixará desviar o olhar James Bridges / Netflix

Um dos suspenses de terror mais perturbadores e impactantes do cinema está na Netflix e não te deixará desviar o olhar

Vidas são feitas de sonhos e quanto mais vivemos, mais nos damos conta de que nossos sonhos só se completam na medida em que conseguimos encontrar com quem dividi-los. O que se assiste em “O Sono da Morte”, entretanto, é que a vida muitas vezes segue por caminhos tão imprevisíveis; avultam circunstâncias tão surpreendentes; sobrevêm-nos perigos e nos vemos forçados a tomar atitudes tão fora de propósito e em pleno desacordo com nossa própria natureza que ninguém é capaz de dar nenhuma garantia quanto a se chegar a bom termo no que diz respeito a qualquer promessa de final feliz. Mike Flanagan tem tarimba em conduzir histórias que derivam para conjunturas inusitadas, até absurdas, depois de uma sucessão de outros eventos que flertam com o desvario, quiçá com o fantástico. O cotidiano de uma família muda por completo depois de uma tragédia e a partir de então nada mais parece fazer sentido. Até que encontra-se um jeito de tentar retomar a direção certa só para que, outra vez, um novo caos se instale.

O ano de 2016 marcou a consolidação de Flanagan como um mago dos thrillers de terror. Além de “O Sono da Morte”, naquele ano o diretor colocou na praça “Ouija 2”, a continuação do longa inaugural da franquia, a cargo de Stiles White, e “Hush: A Morte Ouve”, estrelado pela mulher, Kate Siegel. Aqui, o diretor aprofunda-se em questões que lhe exigem muito mais sensibilidade, e o roteiro, assinado por ele e Jeff Howard, elabora cada ponto com serenidade, dominando o enredo sem margem para equívocos semânticos e levando o espectador por um passeio através da consciência de seus protagonistas. Flanagan emula o estilo de Stephen King, de quem tornou-se o grande discípulo no cinema, mas “O Sono da Morte” pisca para artistas cujo lado esteta pronuncia-se com mais força, a exemplo de Lars von Trier e David Lynch. A desdita que se abate sobre o casal de personagens centrais vai sendo amaciada por pela inclusão gradativa de borboletas nos momentos em que a trama parece irremediavelmente mórbida, em que pese a fotografia de Michael Fimognari não abrir mão da penumbra. Flanagan aproveita-se dessas horas de indefinição estético-semiótica para induzir a plateia a inferências capciosas; algum tempo depois, filme começa a orbitar quase sempre ao redor de Cody, de um Jacob Tremblay que, voluntariamente ou não, foi se especializando em interpretar crianças marcadas pelo desatino ou a maldição dos adultos, como visto em “O Quarto de Jack” (2015), de Lenny Abrahamson. Paulatinamente, Kate Bosworth e Thomas Jane cavam espaço como Jessie e Mark, os pais do órfão vivido por Tremblay, que vai morar com eles levando junto uma legião de fantasmas capitaneados por um tal homem do cancro, um monstro que alimenta-se de seus traumas. 

O tropo do medo da hora de ir para a cama, as monarcas que infestam o quarto de Cody e, claro, a morte que se lhe manifesta durante o repouso, lembrando-lhe inconscientemente de alguém que não deveria ter saído de cena tornam o filme uma instigante fábula sobre as dificuldades de se crescer, mormente em condições não exatamente protocolares. Por uma ironia qualquer, “O Sono da Morte” termina num movimento ascendente, como se o filme não fosse nada além que a degradação de de um sonho ruim que se dissipa com a aurora. E então outros pesadelos ganham substância.


Filme: O Sono da Morte
Direção: Mike Flanagan
Ano: 2016
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.