Subestimado pela crítica, suspense intrigante e perturbador na Netflix vai te fazer ter calafrios por 111 minutos Divulgação / Netflix

Subestimado pela crítica, suspense intrigante e perturbador na Netflix vai te fazer ter calafrios por 111 minutos

O casamento é a instituição falida mais invejada da história da humanidade. Essa natureza paradoxal do casamento, invenções das que melhor definem o homem e seu desejo racional e apaixonado de perpetuar-se no mundo de algum jeito, torna-se ainda mais flagrante com o aparecimento dos filhos. Ninguém pode ser capaz de fazer um prognóstico de grande valia quanto a determinar as chances de felicidade de um casal e os filhos, ironicamente, deixam o cenário ainda mais confuso. A picardia cínica de Machado de Assis (1839-1908) parece definir não o mais humano dos sentimentos, mas sua prova factual mais evidente — ao menos do ponto de vista sociojurídico —, ao dizer que o amor foi feito por Deus, mas o casamento é uma invenção do diabo, que tomou a cabeça do homem e o fez confundir este com o primeiro. O Bruxo do Cosme Velho é tanto mais cético no que respeita à descendência certa daquela pequena família inicial. Para Machado, a natureza destacadamente trágica do matrimônio — que nada mais deveria ser se não a consequência palpável da união entre um homem e uma mulher — confirma-se no epílogo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), uma de suas melhores obras, quando afirma categoricamente que “Não tive filhos; não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Em “Herança”, Vaughn Stein expressa seu apoio desabrido ao maior dos retratistas da alma humana no Brasil do século 19.

Estudo do casamento e, em especial, dos rebentos que dele surgem à luz da sabedoria machadiana, o filme de Stein oferece surpresas com que o gênio do escritor, especialista nas contradições humanas, não se assombraria, mas que provocam, da maneira mais direta, reflexões sobre o quanto alguém violenta-se a si mesmo e a quem diz amar em nome de prestígio, fortuna, influência e mais que tudo isso, a manutenção de uma imagem em que se veja exatamente as coisas como deveriam ser, nunca como na verdade são. O texto de Matthew Kennedy aquece esse ímpeto por refutar clichês da forma mais eficiente: dando-lhe todo o espaço, só para que, no momento certo, faça com que a trama dê a guinada que justifica ter se contado tudo o que se pretendia, além desse outro segmento, mais vigoroso que o próprio filme.

Lily Collins tem mesmo encarnado à perfeição o novo conceito que se quer atribuir à mulher pós-moderna — no cinema, ao menos. A atriz central da pegajosa “Emily em Paris” tem o condão de subverter o que se espera de um rostinho bonito, um corpinho delgado e movimentos graciosos e regala o público com desempenhos no mínimo perturbadores na pele de moças que sabem muito bem onde têm o narizinho empinado, realçados justamente pelo inusitado da combinação. Em “Herança”, Collins principia a desabrochar para a maturidade de seu ofício, processo que vai se cristalizando e chega muito próximo do sublime em “Sorte de Quem?” (2022), onde foi dirigida pelo marido, Charlie McDowell. Como se pode constatar, a referência ao casamento aqui não é gratuita.

Lauren Elizabeth Monroe, a atormentada heroína de “Herança”, enfrenta o luto pela morte do pai, Archer, da maneira mais honrada e magnânima que consegue, relembrando, graças aos flashes dispostos por Stein, as verdadeiras maldições lançadas pelo personagem de Patrick Warburton, um homem tão rico quanto prepotente (e que esconde segredos pouco convencionais, de acordo com o que se vai assistir). Esse caldeirão de mágoas entorna com a leitura do testamento, onde se tem que a primogênita dos Monroe ficará com “apenas” um milhão de dólares, ao passo que o caçula William, o almofadinha meio indiferente de Chase Crawford põe as mãos num montante vinte vezes maior. Fica claro que essa fora a vingança pensada por Archer ao longo da vida para punir Lauren por ter seguido a carreira de promotora pública do estado de Nova York, feita de casos em que colocou a ferros gente como ele — e sua abnegação silenciosa em acatar a vontade do morto não convence.

Junto com o dinheiro, Lauren recebe a chave que vai desvendar o grande segredo de Archer e do filme, em que Stein se vale de Morgan Warner, o vilão de Simon Pegg, para desconstruir tudo o que a promotora sabia sobre o pai e sobre si mesma. Essa reviravolta, gradual e intensa na mesma proporção, dá novo fôlego a uma história que passa de hermética a hipnótica num piscar de olhos, fazendo com que Lauren solte, afinal, o monstro que a habita. E enterre o passado de uma vez por todas.


Filme: Herança
Direção: Vaughn Stein
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 9/10