Filme cerebral e delirante da Netflix não vai  te deixar desviar o olhar Scott Garfield / Netflix

Filme cerebral e delirante da Netflix não vai  te deixar desviar o olhar

A vida é mesmo misterioso paradoxo, pleno das reviravoltas todas que garantem o sobe-e-desce que atira-nos à luta pela sobrevivência, momento em que é urgente assumir uma postura mais agressiva diante dos outros, um dos tantos personagens que incorporamos em nosso teatro existencial. Ajudado pelas várias dificuldades que agigantam-se ainda mais no palco tétrico que a vida dispõe para um, onde se chega para matar ou para morrer, aflora em nós o monstro que se assenhora da ribalta e se exibe a nossa revelia, malgrado só queira nos proteger da hediondez do mundo e da nossa própria vileza, nascida da mágoa, do remorso sufocado pelo orgulho, da negligência, do abandono. Leva-se muitas vezes a vida inteira a fim de se chegar ao paraíso onde restam sepultadas as ilusões, as neuroses não encontram mais lugar porque todos os homens, ainda que se expressem por línguas distintas entre si, conseguem entender-se uns aos outros, e a dor mais resistente, capaz de trazer à superfície a tristeza que seca e mata tudo quanto vive, não pode com a esperança, que está em toda parte, não só no fim.

Enquanto não se impõe esse tempo mágico em que o pouco bem é capaz de fazer frente à onipresença do mal, a vida — ou o que sobra dela — vai esfacelando-se por si só, num dos incontáveis movimentos dos homens por conquistar mais e mais prestígio, influência, por infiltrar-se nos meandros a partir dos quais desvendam as  fraquezas de seu próximo e não se acham por vencidos até que vejam concreto seu plano de poder, que toma corpo respaldado pela omissão dos covardes e pela conivência dos hipócritas, que também reivindicam seu quinhão da glória porca da Terra. “The Cloverfield Paradox” é um apanhado original de histórias sobre a conquista do espaço que o cinema vem narrando com mais assertividade há mais de meio século, valendo-se do aprimoramento da tecnologia e, tanto mais, do eterno desencanto do homem com seu próprio destino, o que quase sempre degringola em tragédias pequenas e grandes, íntimas e públicas, que o assolam desde o princípio dos tempos. Percebe-se no trabalho de Julius Onah, o terceiro da trilogia que mistura ficção científica e terror na proporção mais aparentemente equilibrada, toques do James Cameron de “O Segredo do Abismo” (1989), do James Wong de “Premonição” (2000), do Andrei Tarkovski (1932-1986) de “Solaris” (1972), e, por evidente, do grande Stanley Kubrick (1928-1999) de “2001 — Uma Odisseia no Espaço” (1968). Não há nada de fundamentalmente original no roteiro de Oren Uziel, e, contudo, da forma como é elaborado o argumento da progressiva escassez dos recursos naturais num futuro próximo — neste caso, a energia —, a consequente desordem que se instala e, para encimar algo que já é suficientemente confuso, o comentário político, com uma iminente disputa entre Rússia e Reino Unido, circulam lufadas do frescor que areja o mofo natural dessas narrativas, ainda que o assunto renda, com toda a razão, discussões para além do mero entretenimento.

Não deixa de ser curiosa a opção por não necessariamente relacionar-se o enredo de “The Cloverfield Paradox” aos dos irmãos mais velhos. Aqui, Ava Hamilton, a cientista negra e abnegada vivida por Gugu Mbatha-Raw, tenta amaciar a saudade do marido, o médico Michael, de Roger Davies, mergulhando no trabalho, o que, como se vai ver, não é a excelente ideia que ela imaginava. Na tripulação, composta de astronautas de nacionalidades e etnias diversas, Hamilton se destaca, mas logo tem de cultivar em si uma dose extra de resiliência a fim de tolerar a paranoia de Volkov, o russo acuado de Aksel Hennie, e tanto mais a psicopatia silenciosa — mas que vai se revelando no compasso dramaticamente ideal — de Schmidt, o ponto de contato entre a tensão e a agilidade de que tramas como essa precisam se revestir, com um Daniel Brühl maduro e numa das melhores atuações de sua carreira.


Filme: The Cloverfield Paradox
Direção: Julius Onah
Ano: 2018
Gêneros: Thriller/Ficção Científica/Terror
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.