O melhor filme de 2023 acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

O melhor filme de 2023 acaba de estrear na Netflix

Em qualquer parte do mundo, adolescentes gostam de roupas largas, cabelos extravagantes, penduricalhos espalhafatosos, música barulhenta e liberdade, às vezes sem a justa contrapartida e sem o devido merecimento. Único animal que sonha, que deseja, que se encontra e se perde em suas quimeras de perfeição, o homem parece ainda mais deslocado no mundo, incômodo sob uma pele que alarga, afrouxa, cresce e cresce mais enquanto encarcerado naquele tempo sem fim entre os treze e os dezenove anos — há quem diga, não sem as terceiras intenções de se escorar em alguém, que esse universo paralelo que já se prestou a céu e inferno de todos nós num passado mais ou menos remoto vai até os trinta, o que pode e deve ser contestado. As imperfeições de um corpo em mutação constante e sem método são menos perturbadoras que a efervescência de uma alma que sofre por tudo e por nada, que começa a se saber limitada, mas ainda assim não renuncia à necessidade de conquistar tudo quanto existe sem perder o que quer que seja. 

O que supomos irrevogavelmente nosso, por direito e por conquista; as tantas quimeras delirantes acerca do futuro; os feitos todos que o porvir nos reserva — até aqueles que sabemos que nunca vamos chegar a tirar do onírico plano das míseras conjecturas —; a gravidade de tudo quanto toca o que não se permite revelar: o mais que alimentamos expectativas, mesmo as que soam brutalmente cimentadas ao chão da vida, mais distantes ficamos do indócil princípio do existir, em que só vale o que de fato se realiza, certeza que a poesia da adolescência se encarrega de caiar de algum lirismo. Os personagens de “Os Reis do Mundo” incorporam esses paradoxos da vida, especialmente assombrosos na primeira curva da estrada, demonstrando uma evidente inaptidão quanto a se ajustar a vida como ela é, mas também deixando clara sua escolha em permanecer à margem, reproduzindo o padrão de comportamento ensinado pela dureza das ruas, pelo desencanto do existir. A colombiana Laura Mora Ortega tira de seus protagonistas, todos atores diletantes, a essência meio bestial que libertam em cenas tão repletas de violência como de ingenuidade, à luz de um pedido de socorro antes que não reste mais nada.

Continuando o que mostrara em “Matar Jesus” (2017), aqui Ortega também se debruça sobre anseios e urgências de alguém querendo dar um rumo a própria vida, enfatizando que agora são outras carências, menos metafóricas e muito mais pedestres. Numa das primeiras tomadas, o roteiro, da diretora e María Camila Arias, esmera-se por apresentar Nano, o anti-herói vivido por Brahian Acevedo. Aos dezenove anos, esse garoto oscila entre a maturidade de que foi obrigado a revestir-se, menos por gosto que por instinto de sobrevivência, e a insensatez típica da pouca idade. Não tardam a juntar-se a ele o melhor amigo, Rá, de Carlos Andrés Castañeda; Sere, de Davison Florez; Winny, de Cristian Campaña, e o irmão, Culebro, com o contraponto de vilania sem meios-tons de Cristian David Duque, que aparece depois que se revela a primeira reviravolta do enredo.

Ortega não perde nenhuma das vívidas expressões de seus atores, filmando tudo com um misto de beleza e originalidade em com seus planos ora disparados, ora lentos, quase se arrastando, enquadramentos quase sempre muito abertos, tudo friamente pensado a fim de conferir à cena a sensação de distância, de exclusão. O resultado de tamanho esmero é um genuíno tratado antropológico sobre a juventude em países periféricos da América Latina, sobre a resistência cultural nesses rincões perdidos do subcontinente pela ótica do oprimido, sem se permitir contemporizações ao vitimismo. O desfecho reserva uma grata surpresa, com um faroeste pobre, sem revólveres, carabinas e cavalos, mas com sangue. Muito sangue.


Filme: Os Reis do Mundo
Direção: Laura Mora Ortega
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Aventura
Nota: 9/10