O filme escondido da Netflix que vai desgraçar a cabeça de quem gostou de Black Mirror

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Em 1969, um experimento militar que visava ao compartilhamento seguro de dados em tempo real foi sendo ajustado às necessidades da equipe que o desenvolvera, ao passo que também criava outras demandas e fomentava outras possibilidades ainda. Os cientistas envolvidos no projeto viram na empreitada a grande chance de fazer do mundo a aldeia global que apregoava o filósofo canadense Marshall McLuhan (1911-1980), lugar com um quê de utópico e mesmo de mágico onde a maioria absoluta de seus habitantes, independentemente da classe social a que pertencessem, da cor de sua pele, da fé que professassem teriam direito a integrar a nova civilização que se erigiria em seu bojo, mais igualitária, mais fraterna, mais humana, capaz se não de erradicar de uma vez por todas as abissais diferenças entre cidadãos de um mesmo povo, ao menos de oferecer meios para que os de baixo subissem, quem sabe a ponto de se fazerem notar pelos membros das classes dominantes e ter sua chance de mudar de vida. A internet nasceu à luz de um sonho, que, como se sabe, foi de pouco em pouco assumindo sua natureza imperfeita na medida em que, hoje, somente 60% da população mundial dispõem de um ponto de conexão eficiente em casa, levando-nos à conclusão óbvia de que a inteligência artificial, em sua constituição mais rudimentar, não é assim tão acessível.

A cada novo problema, a cada desafio nunca antes visto inventado pela máquina, o homem foi forçado a provocar o surgimento de novos jeitos de equacionar os problemas que ele próprio trazia à luz. Desse modo, apareceram objetos, mecanismos, programas, dispositivos antes completamente alheios ao dia a dia do cidadão comum. Todo esse aparato, capaz de expandir a realidade e mesmo transformá-la, possibilitou ao indivíduo viver situações que faziam parte de seus sonhos mais desvairados, uma espécie de prolongamento de sua consciência, e logo tornaram-se nada mais que um conjunto de eletrodomésticos para o uso cotidiano, como outros quaisquer, tão banais se tornaram. A partir de então, tudo o que a velha musa cantava teve de cessar, no intuito de que novos anseios fossem alimentados, supríssemos novas carências e nos entulhássemos de outras parafernálias.

O que acontece em “iBoy” é, em verdade, o recorte um tanto fantasioso da vida pós-moderna. Ao aproveitar o mote do romance de ficção científica homônimo de Kevin Brooks, publicado em 2010, Adam Randall fala doa superpoderes que fomos todos adquirindo desde a massificação da tecnologia, lembrando o alerta feito por Brooks para a degenerescência moral e o eterno pendor da juventude para a desdita, não exatamente por causa das várias criaturas não humanas a nos rodear — ou não só —, mas pela própria natureza do homem, mormente antes de se deparar com as circunstâncias que o fazem amadurecer, ou por bem ou por mal.

O roteiro de Joe Barton, Jonny Stockwood e Mark Denton é vertido para uma bem filmada sequência em que Tom, o anti-herói adolescente de Bill Milner, não consegue escapar ao tiroteio provocado pelo enfrentamento de duas gangues e termina vítima de um curioso efeito colateral: fragmentos de seu smartphone vão parar no tecido cerebral do garoto (!). Submetido à cirurgia que o força a ostentar uma cicatriz que envergonha, mas também não deixa de se lhe prestar como um troféu, o personagem de Milner se deixa de uma dor de cabeça, quadro absolutamente normal diante de sua nova condição. O que ele não sabe, e preferiria continuar sem saber, é que os condutores eletroeletrônicos do aparelho e o meio inusitado em que foram posicionados pelo choque resultam numa forma revolucionária de conexão, que evolui a galope para uma rede privada forte o bastante para alcançar os computadores e celulares de gente do mundo todo.

Randall faz a trama permanecer nesse sentido por bons dois terços do pouco mais de hora e meia de projeção, até que resolve, enfim, abordar a outra face da história narrada por Brooks, numa guinada que envolve Danny, o melhor amigo de Tom, vivido por Jordan Bolger. O desfecho solar, mesmo circundado pelo cinza do horizonte britânico, mostra que o antimocinho de Milner é bom em superar crises, e até pode ser romântico, como se assiste na última cena, com Lucy, a possível nova namorada, de Maisie Williams.


Filme: iBoy
Direção: Adam Randall
Ano: 2017
Gêneros: Ação/Ficção científica/Suspense
Nota: 8/10