A mais bela história de amor de 2022 acaba de estrear na Netflix e vai te hipnotizar Parisa Taghizadeh / Netflix

A mais bela história de amor de 2022 acaba de estrear na Netflix e vai te hipnotizar

O amor é um sentimento bastante peculiar. Por se fazer necessário exatamente dois para se amar de verdade, o envolvimento amoroso compreende aspectos diversos da vida dessas duas pessoas, cada qual cheia de suas idiossincrasias, seus preconceitos, contradições, temores. Daí também se poder falar que o amor é uma elaboração intelectual das mais sofisticadas, uma sucessão de iluminações que só se realizam em plenitude quando os enamorados estão com a integral posse de suas faculdades mentais, discernindo perfeitamente o que se deve ou não ser alimentado no outro a fim de que se alcance o resultado mais próximo do que viria a ser uma promessa de felicidade digna dessa ideia, e a felicidade é um animal arisco, que foge do homem todas as vezes em que se sente perseguida. O amor é o refinamento máximo a que alguém é  capaz de chegar ao longo da vida; não é razoável que alguém encerre uma longa jornada na Terra sem ter amado — pode-se morrer sem a experiência do amor carnal, por óbvio, mas o amor, ou a ilusão do amor, é tão vital para o homem que sempre conseguimos encontrar um resquício qualquer de sanidade na loucura dos amores que jamais se consumam, justamente porque vivem na alma eterna dos que ousaram se perder no mais belo sonho que se pode sonhar.

Somente quando os cônjuges entendem, não raro à custa de inúmeras batalhas contra seus moinhos de vento, que estão juntos para descobrir o que, afinal, os impele a seguir tentando manter sua história em comum e não para ceder lugar a fantasias pueris sobre amor para além da vida e tórridos folguedos de alcova que avançam pelos anos, contrariando a lógica e a biologia; no momento em que esses dois elementos, a despeito de suas incongruências, de suas tantas idiossincrasias, de seus tantos receios, tornam-se um único ser, para Deus, para a sociedade, e, sobretudo, para si mesmos; na hora exata em que vislumbram uma possibilidade mínima que seja de ignorar seus erros, se concentrar no que têm de mais precioso e escolher ficar juntos, passando por cima de toda adversidade, só então o amor pode, genuinamente, florescer. Uma mulher bonita, fina, rica, com uma posição respeitável na sociedade conservadora da Inglaterra logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), quadra decisiva para o desenvolvimento da indústria em todo o planeta, se deixa seduzir não pelo jardineiro viril, doce e, pasmem, leitor de James Joyce (1882-1941) que trabalha para o marido, mas por tudo o que aquele homem encerrava de mágico e de simples para ela, encarcerada num casamento infausto, ainda que ninguém tivesse culpa. A francesa Laure de Clermont-Tonnerre se apropria da pena do britânico D. H. Lawrence (1885-1930) e verte para a tela um dos romances mais lindamente provocantes que a literatura universal já produziu.

“O Amante de Lady Chatterley” é um conto de amor, mas é igualmente um tratado acerca do poder do ódio, que também se vale do amor para vicejar, em silêncio, sem alarde, sufocando tudo a sua volta num movimento de sutileza absoluta, à luz de um balé maldito. A lady Chatterley do título aparece muito mais do que seu consorte furtivo, o que por si só já quer dizer muito sobre a mensagem que Lawrence pretende transmitir. Os ventos da igualdade de gênero ainda levaram muito tempo para soprar, mesmo no libertário Velho Mundo, adepto do Estado mínimo, da economia de mercado, do capitalismo selvagem, do anarquismo, das utopias e distopias; entretanto, depreende-se da figura adelgaçada e muito pálida de Constance Reid uma mulher muito à frente de seu tempo. O roteiro de David Magee omite, mas no romance, Lawrence frisa que Constance já havia tido algumas experiências amorosas no currículo quando conhece o baronete Clifford Chatterley, de Matthew Duckett, por quem se apaixona e é correspondida. Pela maneira como Constance se comporta ao longo da trama, pode-se inferir que tenha sido ela a partir para cima do pretendente, com quem não tarda a se casar. Nessa adaptação, a sexta desde o trabalho de Marc Allégret (1900-1973), em 1955, Emma Corrin dá vida a uma senhora Chatterley docemente fescenina, quase pornográfica, tanto mais para o espírito de sua época, porém muito fiel à narrativa lawrenciana.

O escritor deixa a critério da audiência eventuais juízos de valor acerca de Connie, da mesma forma que confunde o público quanto à índole de Clifford, decerto um homem fraco, cuja decisão de mudar-se com a esposa para a herdade meio sombria de Wragby, a algumas horas de Londres, resvala em seu desejo de retirar-se das vistas dos conhecidos depois que volta da guerra paralisado da cintura para baixo. Clermont-Tonnerre trabalha essa pulsão de morte — como já fizera em “Mustang – Alma Indomável” (2019) —, ajustando-a comodamente à personalidade irrequieta de lady Chatterley também anestesiada, mormente com o êxodo repentino e compulsório para Wragby. A magnífica composição de Corrin faz com que o espectador se conforme com a passividade autodestrutiva de sua personagem, como uma fera que se cansa de lutar contra um caçador expedito, que conhece-lhe todos os meneios, até ser sacudida com violência pelo encontro que há de sustentar o enredo doravante. E pouco antes disso, uma declaração do marido se encarrega de limar pela raiz todos os seus últimos anseios de um matrimônio menos lutuoso.

Oliver Mellors, o guarda-caça de Wragby, entra na história, como J.Pinto Fernandes em “Quadrilha” (1930), o poeminha jocoso e cheio de delicadas revelações do sábio Drummond, com a diferença de que Mellors se reconhece um estranho naquele ninho. Mais uma vez, Connie recusa-se a acatar o que o destino lhe reserva e começa a frequentar o chalé do subalterno, mais e mais insinuante. Jack O’Connell rivaliza com Corrin pelo posto de personagem central, agarrando toda e qualquer oportunidade que a diretora lhe proporciona para tanto. Esse amante quase involuntário da mulher do patrão rouba a cena, não deixando margem para que se cogite um traço sequer de vilania em suas atitudes, enquanto aproveita para, dizendo o texto impecável de Lawrence, trazer-nos para mais perto de sua existência miserável. Mellors, a exemplo de lord Chatterley, também foi à guerra, voltou oficial, mas continua pobre e desvalido, sem ninguém que dele se compadeça, nem mesmo a mulher, uma tal Bertha, que se aproveita de sua ausência para preencher seus dias deitando-se com o maior número de homens que consegue — se pudesse sugerir-se algum elo entre sua conduta e a de Connie, o raciocínio já nasceria eivado de má-fé, como se pode comprovar pela ligação verdadeiramente anímica que o guarda-caça nutre por sua nova parceira, admirada que esse sujeito humilde, às vezes rude, tenha um apetite literário tão voraz e plural. Indiretamente, sua bibliofilia determina o começo da descida ao inferno que terá de amargar: Ned, o novo companheiro de Bertha vivido por Nicholas Bishop, invade a cabana e encontra “A Viagem”, o primeiro romance de Virginia Woolf (1882-1941), com o nome de Connie na contracapa.

Até o desfecho, entre melancólico e solar, essas duas almas fustigadas pela mais humana das emoções — e pela maledicência de bocas diabólicas, por óbvio —, passam maus bocados, a agora ex-lady Chatterley num autoexílio em Veneza com a irmã Hilda, da ótima Faye Marsay, onde também é espinafrada por razões bastante evidentes, e Mellors num vilarejo escocês, recomeçando do zero, de novo. A fotografia em sal de prata e mercúrio de Benoît Delhomme ajuda quem assiste a “O Amante de Lady Chatterley” a esquecer a tristeza deles, mormente nas cenas edêmicas, nada lascivas dos dois corpos marmóreos em nudez frontal, amando-se na relva ou tomando banho de chuva, como duas crianças travessas. A felicidade, em muitas circunstâncias, é mesmo só isso: um amor confuso, depois de mil revoluções contra esse adorável inimigo.


Filme: O Amante de Lady Chatterley
Direção: Laure de Clermont-Tonnerre
Ano: 2022
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10