Novo filme da Netflix que vai acalmar seu espírito e deixar sua semana mais leve KC Bailey / Netflix

Novo filme da Netflix que vai acalmar seu espírito e deixar sua semana mais leve

Nada estará completamente perdido se conseguirmos manter nossas lembranças. É nas lembranças de todos os papéis que exercemos e de todos aqueles que passaram por nossas vidas que nós vivemos, em tudo o que nos remete às pessoas que, ao longo de uma jornada que pode ser admiravelmente longa ou curta demais, deixaram um pedaço de si, carregaram um bocado de nós e se misturaram à bruma do tempo, seguiram seu caminho, tornaram à aridez vermelha e perfumada do chão onde tudo principia e metamorfosearam-se numa outra coisa, num processo em que cessa tudo o que a velha musa cantava e evola-se a matéria em algo cujo nome não se ousa dizer, vigoroso o suficiente para romper a dureza da terra e fecundá-la, desafiar o azul de um transcendente céu, cobrir-se do verde da esperança, medrar, florir, e, ao cabo de tanto doido esforço, encarnar-se em gordos frutos que sacrificam-se a fim de nutrir corpos e almas expulsando a fome cruel, quando o ciclo volta ao ponto em que começou. Elucubrações sobre o breve e o eterno da vida, o mistério mais revelador da Criação, sem fim de encontros e desencontros, chegadas e partidas, triste travessia de um mar proceloso a bordo de uma nau sem rumo e sem casco, é o que nos resta a nós, homens tacanhos, nus e descalços na solidão nossa de cada dia e de sempre na cruzada de oceanos que lavam o pranto e se misturam às pequeninas lágrimas, imagem involuntária de uma nostalgia sem tamanho, uma nostalgia do que se viveu e, principalmente, do que apenas se pensou viver, como se no espaço de um instante transmutássemo-nos em longevíssimas tartarugas e baleias, que não sabem mais o que é realidade e o que devaneio ao avizinhar o fim de uma existência muitas vezes mais prolongada que a nossa, ou em borboletas, que sonham que são poetas e acabam por sê-los mesmo.

O maior talento do homem é saber-se limitado, cada vez mais preso no castelo que construiu para refugiar-se da maldade e da indiferença, onde guarda suas solidões, de onde parte para outros mundos e manifesta o desejo de ter outra vida. Pode levar um tempo que para o gênero humano, permanentemente assaltado por suas misérias, é impossível de ser calculado, mas sempre chega a hora em que as chagas abertas de uma alma despedaçada se fecham, mesmo que ainda doam. Essa é a deixa para abandonar os velhos hábitos que nos escravizam, os vícios que nos corrompem ou os traumas que supomos fazer de nós indivíduos melhores, quando só servem para nos tornar mais amargos e mais fracos. Em “O Diário de Noel”, Charles Shyer apresenta um protagonista absorto por suas dores, até que algo em si é tocado, com tanta força que começa a se processar a mudança que faltava a fim de que se livrasse dos estorvos que lhe embargavam os passos, mais firmes e mais seguros na direção da nova vida que sempre almejara.

Baseado no romance homônimo de Richard Paul Evans, publicado em 2017, o roteiro de Shyer, Rebecca Connor e David Golden se vale de pistas falsas algo farsescas, mas eficientes quanto a manter o interesse pelo enredo, a começar pelo próprio título, que não se refere ao Bom Velhinho. Noel é uma mulher, mais exatamente a mãe de Rachel, a mocinha nem tão intocada de Barrett Doss. A narrativa se desdobra em torno da tentativa de Rachel de encontrar algum vestígio do paradeiro da mãe, que a entregou em adoção a um casal em melhor situação financeira. O diretor consegue fazer com que a busca de sua personagem central torne-se uma saga, pontuada por capítulos que, mesmo corridos, sem nenhuma marcação estrita, garantem certo suspense sobre o destino de Noel. Numa frente paralela, mas muito próxima, Jacob, o antimocinho de Justin Hartley, atua como anteparo emocional da garota, expediente manjado, mas bastante producente. Diferentemente do que dá a entender, “O Diário de Noel” não é um conto natalino; é a procura de uma mulher por seu passado, com todas as dores e delícias que tal ousadia pode implicar.


Filme: O Diário de Noel
Direção: Charles Shyer
Ano: 2022
Gêneros: Drama
Nota: 8/10