‘1985’, ‘Santa Evita’ e ‘Azor’ pensam a ditadura argentina Divulgação / Prime Video

‘1985’, ‘Santa Evita’ e ‘Azor’ pensam a ditadura argentina

Causou certo rebuliço nas redes sociais o lançamento recente do filme “Argentina, 1985”, de Santiago Mitre e exibido no Amazon Prime Video. A história do promotor Julio Strassera (interpretado por Ricardo Darín) seria, segundo internautas brasileiros, a forma ideal de punir quem conduz regimes de exceção, como as ditaduras da América Latina no século 20. Por esse raciocínio, o remédio é a aplicação de processos sumários, tal qual o que se mostra no filme com a prisão perpétua do general-presidente Jorge Rafael Videla.

Noves fora o entusiasmo que o presente desperta, as maneiras de lidar com o passado nunca foram pontos pacíficos no Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai, Brasil, Paraguai). Ditaduras da região, a partir nos anos 1960, tornaram-se mundialmente conhecidas por duas inovações: o desaparecimento de pessoas e a anistia sumária de “gestores” públicos que cometeram sequestros, torturas e assassinatos. Houve a produção de uma amnésia coletiva, com o argumento de pacificar os ânimos políticos.

Sem memória institucionalizada, coube à produção cultural a tarefa de fazer o ajuste de contas. O filme “Argentina, 1985” é mais uma obra de uma série de tantas outras, a começar por “A História Oficial” (1985), de Luis Puenzo, que revelou ao mundo o caso dos bebês de presas políticas sequestradas pelos militares. Para entender melhor essas histórias argentinas, vale a pena assistir também aos recentes “Santa Evita” (2022), série do Star Plus, e “Azor” (2021), de Andreas Fontana, disponível no YouTube Filmes.   

“Argentina, 1985” é um clássico filme de tribunal — cuja novidade do século 20 é julgar os crimes contra a humanidade. Cria-se a narrativa do velho promotor que se junta a jovens corajosos para fazer Justiça. O pano de fundo é que a decisão de punir os carniceiros (Videla, Galtieri, Massera) surgiu como oportunidade de dar sobrevida ao presidente argentino Raul Alfonsín, engolido pela herança desastrosa deixada pelo “Processo de Reorganização Nacional”, o nome oficial da ditadura de 1976 a 1985.

A gênese do “Processo” aparece com nitidez no já clássico “O Segredo dos Seus Olhos” (2009), de Juan José Campanella. O assassino do filme é um colaborador do governo subterrâneo que surgiu na época de Maria Estela Martínez de Perón, conhecida como Isabelita e que herdou o comando do país com a morte do marido Juan Domingo Perón. Com o objetivo de fazer uma reforma econômica liberal e controlar os “rebeldes”, ocorreu uma matança sem igual, incluindo os conhecidos sequestros de bebês.

Fantasmas argentinos

A série “Santa Evita” tem foco nas histórias do casal Juan e Eva Perón, que instaurou um regime de governo populista. É dali que surge a imagem da mãe dos pobres e, principalmente, a relação bombástica entre política e religião. A trama criada para o Star Plus se baseia no ótimo romance de Tomás Eloy Martínez sobre a incrível história do cadáver de Evita, que morreu em 1953, foi em embalsamada e acabou vagando pelo mundo. A política carrega sempre altas doses do que parece ser simples loucura.

Santa Evita
Santa Evita (2022), série do Star Plus

Evita foi uma péssima atriz de cinema que, por isso mesmo, se capacitou para ser uma política altamente eficaz, de acordo com a análise de Beatriz Sarlo, no livro “A Paixão e a Exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros”. Aquela mulher soube dominar os espaços públicos e mover as paixões da população argentina. Sua história é uma aula de como a política partidária se movimenta por meio de símbolos religiosos e mitos, ativando os sentimentos e afetos. O populista é um mestre desse jogo.

O filme “Azor” expande o imaginário do cinema que trata da ditadura na Argentina. O que surge na tela são as pessoas da alta roda do país. Um banqueiro suíço vai a Buenos Aires com a esposa para visitar seus clientes. O incômodo está na ausência de seu sócio local que desapareceu repentinamente. As visitas e a procura pelo sócio são o motor da trama. Vão aparecendo os tipos mais estranhos para revelar as entranhas da engrenagem social argentina, nas figuras de parasitas sociais, fazendeiros, padres e militares.

À medida que o filme avança, descobre-se a confusão em que o banqueiro impecável e seu sócio igualmente chique haviam se metido. E mais relevante: os personagens mostram que uma ditadura, no caso o “Processo”, se resume a uma simples operação de pilhagem, o roubo de pequenas coisas. Todos estão pilhando uns e os outros. Sob o pretexto de se colocar ordem no país, foi instaurada a mais prosaica desordem. Não existe, no final das contas, uma distinção entre o combate ao crime e a própria execução de um crime.

A pilhagem foi o cerne do “Processo”, conforme tão bem mostrou Fernando Solanas no documentário “Memorias del Saqueo”. As pessoas pobres e comuns saqueavam lojas e supermercados na Argentina do ano de 2001 — quando ficou claro que “nada mais seria como antes”. Solanas, que se tornou senador anos depois, faz a ligação da crise do começo do século 21 às reformas econômicas e à dívida externa criada por Martínez de Hoz, o superministro da Economia do general Videla. Na verdade, este foi o grande “saqueo”.

A herança histórica de algo como o “Processo” argentino não está apenas nos crimes contra humanidade, como torturas, sequestros e assassinatos. A tragédia maior gestada a partir dos anos 1970 foi a modernização por meio de reformas econômicas, implantadas para desmontar o legado de governos chamados de populistas. Os personagens de “Azor” expõem de forma aguda a anatomia desse desastre sul-americano que é essencialmente econômico-liberal e cujos instrumentos estão na pilhagem.