Você não imaginaria que um filme, na Netflix, pudesse te divertir tanto Boris Martin / Netflix

Você não imaginaria que um filme, na Netflix, pudesse te divertir tanto

A vida é feita de uma sucessão de medos, anseios, autocobranças, satisfações que achamos que devemos ao universo — quando o universo não tem a mínima ideia de quem somos, não faz o menor esforço para entender nossas necessidades as mais íntimas, não partilha de nossos desassossegos quanto ao que nos prepara o mundo e sua sedutora crueldade, e não tem nenhuma pretensão de fazê-lo —, dilemas existenciais que vêm e vão ao sabor das obsessões mais vultosas do momento, tantos deles profundos como um balde, e dúvidas quanto ao que reserva-nos o futuro, essas a fonte do alvoroço essencial que é viver. A sensação de desajuste, de estar sempre colocando-se em situações incômodas, sobre as quais não temos qualquer ascendência, perigosas até, muitas vezes — e, pior, de propósito, ainda que nosso inconsciente nunca o queira confessar —, vai tornando-se mais abafada ao longo dos anos, mais difusa, até que nos socorre uma salvífica maturidade, de que, finalmente estamos autorizados a dispor nos momentos de inescapável apertura. Esse assalto da razão pode parecer mágico; todavia, cada um sabe exatamente todo o constrangimento, todo o opróbrio, toda a dor que passou e sentiu e passa e sente ainda para chegar a um estágio pouco menos distante do devaneio infrutífero e da loucura suicida que nos ronda a todos.

O fim da juventude é uma vitória. Vencer as cruentas batalhas que a vida nos impõe logo no princípio de nossa jornada no mundo demanda de cada um doses maiores ou menores de sacrifício, renúncias e privações, empreitada que nem todos estamos dispostos a bancar. Acontece que há, claro, as muitas circunstâncias em que viver mais parece um jogo, uma brincadeira de crianças travessas. Eventos inesperados, repentinos, trágicos, tudo quanto pode haver de surpreendentemente melancólico e acerbo no fado de uma pessoa se anuncia com toda a delicadeza, como um cancro maligno no organismo até então saudável, ou cai do azul de chofre, derrubando qualquer um que lhe tente deter. Histórias como a que se vê em “De Volta ao Baile” (2022) não são propriamente comuns, mas pela razão mesma de a vida não fazer sentido é que despertam ainda mais interesse. Alex Hardcastle capta esse espírito nonsense da aventura do existir com uma modalidade de humor cada vez mais em desuso — e por isso tão saborosa —, exercida por uma dupla de protagonistas que sabem perfeitamente por que estão ali.

Arthur Knauer, Arthur Pielli e Brandon Scott Jones, o trio de roteiristas por trás da adorável doidice de “De Volta ao Baile”, sacam da cartola alguns coelhos quanto a fazer do mote central do filme algo verossímil, mas fazem questão de deixar o público duvidando do que tem diante de si em diversas ocasiões, tamanha a natureza farsesca do enredo. Já na abertura, se tem claro que Knauer, Pielli e Scott Jones pretendem fazer um tributo a uma velha juventude encerrada há não muito tempo, e quarentões mais que qualquer outra categoria de público nos identificamos de súbito com as referências sensoriais escolhidas pelo trio para aludir à passagem dos anos. Hardcastle encampa essas sugestões sem parcimônia, seu grande trunfo, ajudado pelo desempenho irretocável de Angourie Rice, que parece mesmo ter sido adolescente no fim dos 1990. Rice diz suas falas, cheias de menções a its de quase um quarto de século atrás, com total convicção, o que acaba por dar à trama uma ambivalência involuntária; quando sua versão de Stephanie, a protagonista, sai de cena, colhida pelo episódio infausto que dá azo à narrativa principal, sente-se falta de sua interpretação mais enxuta, substituída pelos cacoetes de Rebel Wilson, que assume a partir de então. A performance destacadamente irregular de Wilson, cuja veia cômica muitas vezes se sobrepõe ao que deve ser transmitido, só se submete a algum freio com a entrada em cena de Sam Richardson como Seth, o aspirante a namorado de mais de vinte anos antes que ainda nutre uma queda pela moça, mas não esconde o desapontamento quando de uma certa tardia festa de formatura do ensino médio.

Alegoria sobre o quão difícil pode ser para adolescentes dos anos 2000 tornar-se adulto nas décadas seguintes, tempo de um politicamente correto obsessivo e asfixiante — e que sempre nivela a todos por baixo —, “De Volta ao Baile” é um daqueles filmes de que não se espera grandes reviravoltas, lacuna preenchida por substanciais memórias afetivas para quem viveu aquela época, que aqueles que não viveram absorvem em boa medida. A trilha sonora de Jermaine Stegall, com hits de Avril Lavigne, Britney Spears, Shania Twain e Spice Girls, faz a audiência cantarolar umas estrofes e arriscar umas pré-históricas coreografias. E chega de inconfidências por ora.


Filme: De Volta ao Baile
Direção: Alex Hardcastle
Ano: 2022
Gênero: Comédia/Coming-of-age
Nota: 8/10