Filme português na Netflix leva o espectador para dentro dele e o transforma em personagem Divulgação / Ar de Filmes

Filme português na Netflix leva o espectador para dentro dele e o transforma em personagem

Há muitas formas de se tomar a vida, nenhuma mais certa ou mais errada, o ponto é outro. Cada um é capaz de assinalar muito bem os momentos nos quais viver começa a ficar inexplicavelmente difícil, como se alguma coisa nos segurasse, ou pior, nos puxasse para o fundo, à guisa de uma força misteriosa que, sem qualquer explicação racional, determinasse que nossa existência não pode usufruir do horizonte sereno de um dia de sol, cintilante e vigoroso, suavizado por uma brisa vinda das lonjuras do oceano, e tem de se conformar com um naufrágio rápido e melancólico, por mais que queiramos protestar. Ignorar essas complexidades da existência, cercada pelos problemas dos quais só nos livramos quando conseguimos penetrar o que há de mais aterrador em nosso espírito, não é prudente, mas perder-se em divagações sobre o quão senhores somos ou não de nossos caminhos é um jeito no mínimo controverso de se viver. Uma vez que a vida não suporta a tepidez, sempre chega a hora em que ou nos revestimos de toda a coragem de que pudermos e empreendemos as mudanças de que carecemos há tempos ou aceitamos a sina da infelicidade crônica, grande conforto para almas pusilânimes.

A protagonista de “Mar” (2018) transita entre esses dois universos: quer se refazer, se reinventar, tornar a algum pedaço agora desconhecido de sua história tão fragmentada, ao passo que é absorvida por suas mágoas, pela dor de se reconhecer pequena, impotente, vulnerável a ataques perpetrados por si mesma, como se vítima de um mal físico que sabota o organismo que lhe dá guarida, e este por seu turno rapidamente ergue uma poderosa muralha de defesa, que impede a invasão dos contendores, mas acaba por barrar também a entrada de reforços. A diretora, a portuguesa Margarida Gil, se vale dessa personagem frágil por dentro e por fora a fim de tecer uma perturbadora glosa acerca do estado da Europa nesta quadra doída do século 21, depois de observar um fenômeno que testemunha nosso fracasso como civilização de modo tão silencioso quanto pungente.

Francisca, a ex-funcionária da Comissão Europeia vivida por Maria de Medeiros, decide que é hora de virar uma página não exatamente trágica, mas sem dúvida dramática. Viúva, envolta por uma bruma de incerteza quanto a seu futuro — a despeito da situação financeira confortável —, ela contrata os serviços de uma pequena tripulação e sai numa viagem meio intempestiva pelas águas do sul da Europa. O roteiro de Gil e Rita Benis dá à empreitada essa natureza de fuga, em que Medeiros aplica uma lente de aumento e explicita o desespero contido de sua personagem. A atmosfera plácida de “Mar” dá margem para que a diretora e sua protagonista elaborem as agonias trancadas no âmago frio e sombrio de Francisca; aos poucos, aflora sua inconformidade quanto ao que decerto se constitui a tristeza insuperável de sua vida, o desaparecimento do filho, que, pelo que se depreende das inflexões sutis do texto de Gil e Benis, não morreu, apenas caiu no mundo, deixou-se levar pela necessidade de experimentar outras realidades, por um gosto um tanto suicida pela aventura — depois, naturalmente, de um desentendimento com a mãe —, o que ela faz também. A reputação de pioneiros no domínio dos oceanos pelos navegadores portugueses é lembrada pela diretora num belo monólogo em que Medeiros diz um monólogo atribuindo a cada estrela que avista o nome de um comandante lusitano, apogeu da poesia do filme. Francisca se lembra de Pero da Covilhã (cf. 1450 – cf. 1530), Pero Vaz de Caminha (1450-1500), Vasco da Gama (1469-1524), até chegar a Pedro Álvares Cabral (1467-1520), e claro que brasileiros nos sentimos especialmente tocados.

A saga de Francisca a bordo do veleiro À Flor do Mar, acompanhada por Pedro, o dono da embarcação interpretado por Pedro Cabrita Reis, e Toni, o capitão algo misterioso de Nuno Lopes, lembra mesmo uma reconquista de território da personagem, físico e metafísico — embora seu relacionamento puramente carnal com Lili, a cantora caída em desgraça de Catarina Wallenstein, embargue qualquer chance de um arco romântico entre ele e Francisca. A entrada em cena de Augusto Amado como Malik, um imigrante clandestino da Nigéria, acrescenta um pouco mais de doçura à narrativa, e é por suas mãos que chega a reviravolta meio fantástica dessa história parte sangue, parte lágrima, parte mar. E toda sonho.


Filme: Mar
Direção: Margarida Gil
Ano: 2018
Gêneros: Drama
Nota: 8/10