Profundamente comovente, filme na Netflix vai mudar sua forma enxergar a vida

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Ser livre é, muitas vezes, a maior das aspirações a que um homem pode se permitir. Prisioneiros da família; dos amigos; da carreira, que lhe permite ganhar o pão; dos outros; de si mesmo; do mundo; da vida; da morte; nunca sabemos com a certeza que nossas neuroses julgam necessária se estamos no caminho certo, por mais que a intuição sopre-nos a verdadeira resposta, que só nosso coração, invisível aos olhos morbidamente curiosos da crueldade alheia, intimamente conhece. A sensação de estar sempre à mercê do julgamento de quem nunca se preocupou em calçar nossos sapatos e experimentar na carne nossas dores é um dos flagelos com os quais toda criatura debaixo do sol tem de aprender a lidar, sob pena de perder-se ainda mais numa cornucópia de solidão e mágoa, por mais injustas que sejam as perseguições, as importunações, os achaques. Esses sentimentos tétricos que povoam a alma humana desde o berço e a conspurcam indelevelmente, só ratificam que ninguém, por mais que mereça, é livre de todo, que todo homem e toda mulher, por mais forte que brilhe sua estrela, tem de se submeter ao beneplácito social que o absolve ou o condena de vez, o que por seu turno sempre implica em sofrimento, em maior ou menor medida.

Cadeias são a materialização por excelência do fracasso do homem como ser racional. Por mais que todos saibamos que é impossível renunciar a mecanismos de coerção social do indivíduo, de certos indivíduos, no intuito de, quiçá, chamá-los de volta ao mundo civilizado, sempre há boa dose de trauma coletivo ao se tocar em assuntos como a necessidade da devida punição a pessoas que, por um ou outro motivo, rompem com o contrato sob qual vivemos todos, ainda que nunca tenhamos assinado documento algum, que estipula que todos nós temos o direito de ganhar a vida, trabalhar, contrair dívidas, quitá-las, casar, constituir família, ser feliz, ser infeliz, sem que nossas vontades choquem-se com os planos dos outros. Uma vez que nossa ideia de liberdade extrapola o limite que naturalmente nos compete e toma lugares que não são seus, entram em cena os dispositivos que garantem que a ordem se mantenha, culminando na atuação do sistema prisional, em sendo o caso.

Inicialmente pensada como a solução mais lógica quanto a punir crimes hediondos de infratores que a Justiça reputa como especialmente perigosos, a pena capital nasceu sob o signo da polêmica. A primeira sentença de morte em colônias americanas subordinadas ao Império Britânico de que se tem notícia data de 1608, quando o capitão George Kendall foi fuzilado em Jamestown acusado de espionagem em favor do governo espanhol. De lá para cá, foram 15.391 execuções por fuzilamento, cadeira elétrica e, mais recentemente, via injeção letal, o método mais moralmente aceito, uma vez que não degringola no show de horrores de miolos espirrando de crânios arrebentados ou olhos que explodem num macabro rio de sangue depois da última agonia do sentenciado, potencial candidato a mártir, por mais abjeta que tenha sido sua falta. Já vem de algum tempo as discussões a respeito da abolição definitiva e irrevogável da pena capital. Chinonye Chukwu absorveu muito bem o espírito e a importância de se discutir o tema. “Clemência” (2019), a obra-prima da nigeriana-americana, parte de uma personagem visivelmente atormentada por realizar o trabalho sujo de governos hipócritas, que assumem-se ineptos quanto a recuperar seus custodiados, ao passo que relegam-nos a uma morte espetaculosa — para não mencionar os episódios, esses, sim, ainda mais absurdos, de sentenciados conduzidos à execução e o que o tempo prova inocentes, depois de averiguações mais cuidadosas.

Uma atriz pouco conhecida do público brasileiro galvaniza o mote central de “Clemência”. A carcereira Bernardine Williams, da excelente Alfre Woodard, é a responsável por acompanhar o desempenho dos forçados na penitenciária em que dá expediente há mais de trinta anos, principalmente os dos sentenciados à morte. Livremente inspirado na vida da ex-prostituta Cyntoia Brown, que obteve o perdão do Estado no último minuto, o roteiro de Chukwu se concentra na reação de Williams frente à execução iminente de Anthony Woods, o detento que se afirma vítima de uma injustiça até que lhe sobrevenha o castigo ao qual não irá resistir, performance comovente de Aldis Hodge. A tensão maior do enredo fixa-se justamente aí, em saber se se cometeu mais uma atrocidade ou se a carcereira de Woodard pode sentir-se menos culpada pela morte de Woods. Em qualquer dos cenários, esta é uma mulher destroçada.


Filme: Clemência
Direção: Chinonye Chukwu
Ano: 2019
Gêneros: Drama
Nota: 9/10