Filme com Jessica Chastain e John Malkovich, na Netflix, vai tirar seu fôlego por 96 minutos Divulgação / Voltage Pictures

Filme com Jessica Chastain e John Malkovich, na Netflix, vai tirar seu fôlego por 96 minutos

Estar vivo é um privilégio, mas quando a vida passa a ser encarada como uma mercadoria, com preço e data de validade, é sinal de que houve uma deturpação qualquer ao longo do processo civilizatório. Incapaz de dar conta de todas as suas muitas atribuições, o Estado, na prática, legitima o mau uso que certos agentes fazem da vida alheia, como se estivessem formalmente autorizados a dar às mais distintas situações o termo que tudo resolve, pelo menos aqui neste plano. Morrer passa a ser uma questão decidida pelo talante de uma pessoa, colocada na cena especialmente para isso, dar cabo de alguém que incomoda, do jeito mais pragmático que achar. Se se tomasse tal excrescência por coisa normal, em muito pouco tempo também surgiriam megacorporações versadas em limpar toda sorte de imundície, como o jargão se refere a eliminar criminosos e, destarte, conter a violência de uma maneira artificialmente perigosa e longe da razoabilidade, uma vez que estar-se-ia sempre à mercê de bandidos ainda mais ousados, que se lançariam a suas empreitadas delinquentes com ímpeto redobrado.

Combater o crime com outros crimes, como se pode supor, não tem nenhuma chance de dar certo. Por mais difícil que a vida vá se tornando, há que se buscar uma solução minimamente equilibrada para os tantos imbróglios do dia a dia, uma ideia óbvia, mas que não passa pela cabeça de todo mundo, até pelo contrário: muita gente aposta no caos do quanto pior, melhor para tirar uma casquinha e ir fazendo um providencial pé-de-meia, talvez para os tempos quiméricos em que não será mais necessário matar ninguém para se continuar no jogo. A personagem-título de “Ava” (2020) parece em paz com sua condição de fora da lei, mas só parece. O diretor Tate Taylor coloca na boca e nos gestos de sua personagem central ideias e reações absurdas, que afrontam com gosto o politicamente correto, sem medo de cara feia ou cancelamentos. Ava, uma mulher bonita e refinada, é conhecida no submundo pelo hábito nada invejável de dar a suas vítimas a chance de deixar este mundo com alguma dignidade, o que também a diverte. Sua psicopatia até pode passar por mera excentricidade, mas ela mesma sabe que não tem nada de normal, e esse é o momento em que quem se entretém é o público.

No roteiro de Matthew Newton, Jessica Chastain é a antípoda de Maya, o tipo que viveu no excelente “A Hora Mais Escura” (2012), com que Kathryn Bigelow brinda a audiência com sua visão, fria e mordaz, sobre a perseguição ao terrorista saudita Osama Bin Laden (1957-2011), chefe da Al Qaeda e responsável pelos atentados do 11 de Setembro, finalmente morto depois de uma minuciosa operação que se estendeu por dez longos anos. Guardadas as devidas proporções, Ava está mais para a mulher psicologicamente adoecida de “Os Olhos de Tammy Faye” (2021), levado à tela por Michael Showalter, ambas às voltas com fantasmas de uma vida sem muito sentido. Na sequência de abertura, Ava, alcoólatra em recuperação e ex-delinquente juvenil, serve de taxista a um homem que apanha no aeroporto de Paris, impecavelmente arrumada, batom roxo contrastando com a pele alvíssima e uma peruca loira e curta escondendo os cabelos ruivos. Instantes depois, ao longo dos quais transcorreu uma conversa enviesadamente sexualizada entre ela e Peter, o passageiro, vivido por Ioan Gruffudd, ela o conduz a um terreno baldio, salta do carro e vai para o banco de trás, onde ele está sentado. O que vem a seguir não tem nada de romântico, e deixa claro que, em se tratando de concluir uma missão, Ava supera qualquer não se importa em ferir suscetibilidades.

Suas próprias fraquezas vêm à tona sob o relacionamento perigosamente tumultuado com a mãe, Bobbi, papel com que Geena Davis prova que ainda tem muita, mas muita lenha para queimar, e a irmã, Judy, de Jess Weixler, hoje casada com Michael, um ex-caso, interpretação contida e cativante do rapper Common. No outro extremo, o dos afetos efetivamente realizados, encontra-se Duke, de John Malkovich, o mentor por cujas mãos chegara a um ponto de destaque no posto de assassina de aluguel disputada por corporações de todo o mundo, uma carreira tão marginal quanto instável: Simon, o provável substituto de Duke, personagem de Colin Farrell, passa a tê-la como um alvo fácil, explicitando suas falhas e tripudiando de seus vícios.

É justamente dessa maneira, desdobrando os segredos de polichinelo dessa mulher comum e atormentada, que Taylor dá azo a um dos melhores thrillers do cinema recente, valorizando a boa dobradinha de Chastain e Davis, que poderiam ter sido mais elaboradas em certos trechos. Ava até quer se emendar, se entender com a mãe, mudar de vida, mas o que se tem subentendido é quão comprometida se deixou ficar pela vida que julgava perfeita. O tempo da esperança passou e ela só pode fingir que não se importa.


Filme: Ava
Direção: Tate Taylor
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Drama/Crime/Ação
Nota: 9/10