O filme na Netflix que os críticos adoram odiar, mas é bem melhor do que você imagina Divulgação / California Filmes

O filme na Netflix que os críticos adoram odiar, mas é bem melhor do que você imagina

A vida não espera. Escola, faculdade, carreira, negócios, casamento, divórcio, filhos, netos, apreensões: a vida é uma fonte perene de apreensões. Se não nos impomos uma pausa, ainda que curta, e esquecemos tudo por um segundo que seja, as chances de enfrentar um colapso nervoso de proporções variáveis, mas que sempre inspiram cuidado, são reais e crescentes, como uma bomba-relógio prestes a explodir e jogar pelos ares o que se levou o tempo de uma encarnação para ser feito. O desejável, o normal, seria conseguirmos estabelecer esses intervalos à medida que fôssemos liquidando nossas faturas, as públicas e, especialmente, as mais obscuras, mas e quando trabalhar, estudar, investir, viver deixam de ser prazeres e se tornam paranoias, neuroses, vícios, que também nos arrastam para o limbo de uma existência com a qual nunca sonhamos, de que alguns se empenham para fugir porque sabem que tarde ou cedo essa condição há de fazer estragos? Nessas frestas das tantas fragilidades humanas é que se instalam as compulsões, e para fazer-lhes resistência, apareceram as substâncias que acabaram por dominar o homem. E que têm provocado cada vez mais destruição — e celeuma.

Resultado de anos de pesquisas e investimentos, drogas, as legais e as proibidas, se conservam no topo quando o objetivo é mencionar assuntos-tabu, mas não deixam as rodinhas de conversas sigilosas, justamente porque, ao explorar os pontos fracos de pessoas as mais comuns, viraram um negócio rendoso, rendoso demais. Feitas para acalmar ou dar o estímulo necessário nas várias ocasiões em que nosso autocontrole falha, o mercado negro de substâncias entorpecentes está no centro de “Na Rota do Tráfico” (2019), trabalho minucioso, quase didático e nada professoral de Jason Cabell sobre em que medida essas velhas companheiras da humanidade são as vilãs ou apenas uma das várias peças no tabuleiro de um jogo complexo, em que muitos sempre perdem ao passo que outros tantos estão sempre ganhando. Uma engenharia difícil de se conceber e ainda mais custosa de se tolerar.

Cabell sabe onde está se metendo. Fuzileiro naval aposentado, o diretor trabalhou diretamente no combate aos narcocartéis colombianos, experiência que lhe valeu toda a ponderação para fazer um arrazoado frio a respeito do poder das drogas, a começar, por óbvio, pela economia. No prólogo, uma tela negra informa que um quilo de cocaína sai da Colômbia custando US$ 1.600 — e eu aconselho o espectador a não perder esse número de vista. A cada lance, como um novo refino ou o avanço pela fronteira de mais um país, esse valor sobe exponencialmente, e no momento em que a mercadoria chega, afinal, ao destino, o que se constata é que este é um investimento de altíssimo risco, mas que compensa. O diretor-roteirista se mantém nessa toada, acertadamente, evitando julgamentos como os que fazem os dois longas da franquia “Tropa de Elite”, do brasileiro José Padilha — especialmente o primeiro, de 2007 —, ou as romantizações desabridamente filosóficas do excelente “Sicario: Terra de Ninguém” (2015), de Denis Villeneuve, um pensador do cinema, sofisticado e provocativo.

O nome do filme é Lawrence Fishburne. Depois de uma introdução meio prolixa demais, iniciada com a imagem de um homem desacordado e amordaçado num banheiro e coroada por uma menina já meio habituada aos episódios de overdose dos pais, bom desempenho de Marie Wagenman, o personagem anônimo de Fishburne entra em cena. Cabell retrocede a narrativa o suficiente para que o público conheça uma etapa sobre a qual só aqueles que se postam nessa trincheira, de um lado ou de outro, podem falar. No caso do tipo encarnado por Fishburne, além de dar um baile na falange de agentes do FBI designada para prendê-lo, esse homem é, guardadas as devidas proporções, o que se poderia chamar de um bon vivant do submundo. Suas festinhas com prostitutas, regadas ao novo alucinógeno que cria misturando cocaína heroína e fenoxil, não comprometem seu trabalho, pelo contrário: quanto mais cheira, quanto mais se perde nessas orgias, mais desafiado se sente a continuar, e a despeito de todos os esforços da policial interpretada por Leslie Bibb para apanhá-lo, ele sempre arranja um jeito de ficar mais algum tempo na pista — mérito dele e dos altos burocratas que lhe dão guarida em troca de gordas e constantes propinas.

Como havia dito, Fishburne tem a história nas mãos, e ainda que tentasse, Nicolas Cage não teria a menor chance contra ele. Mas Cage parece já ter desistido de lutar pela própria carreira faz tempo.


Filme: Na Rota do Tráfico
Direção: Jason Cabell
Ano: 2019
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 8/10