O homem só vive tanto porque se ampara na lembrança. É com a ajuda das memórias do que passamos que conseguimos adiar um pouco mais a morte, um enigma dentro do grande mistério que é viver, o que não quer dizer que estejamos dispensados de sofrimentos eventuais ou recorrentes ao longo do processo. Como um imenso computador, o cérebro humano acumula tudo com quanto trava contato, com a vantagem sobre a máquina de as informações armazenadas não tomarem espaço e, ao cabo de algum tempo, só restar o que verdadeiramente importa. Talvez por essa razão tenhamos ficado meio mal-acostumados quanto ao que a vida nos prepara, uma vez que guardamos conosco imagens horríveis, mas são as fascinantes que tem o poder de nos tocar e fomentar em nós o desejo e a necessidade de abandonar os velhos hábitos, as crenças mofadas, a vida que já não serve e começar de novo. Mesmo que nunca se vá atingir o estado de perfeição — ou do que entendemos como perfeição — sobre tudo que julgamos de significado inestimável na vida, nos consola a ideia de que algum dia, quem sabe, o que vive em nossos meandros mais lúgubres há de refazer-nos.
Somos um ajuntamento de tudo o que se passa conosco, e dentre essas experiências há, naturalmente, lugar para aqueles momentos em que é mesmo o acaso quem dá a palavra final. Episódios plenos daquela aura de descaminhos que se repelem e se complementam a um só tempo — do mesmo jeito que a vida em si —, definem boa parte de “A Fotografia” (2020), alegoria em que a canadense Stella Meghie dá uma boa medida do quanto de fortuito existe na vida. O roteiro da diretora aproveita para também se desdobrar em torno das urgências mais comuns que nos afetam em maior ou menor intensidade, reservando um bom tempo para desenvolver as idas e vindas de um homem e uma mulher oprimidos pelos sonhos de um e da outra. Aos poucos, vai ficando claro que, por mais que improvável que pareça, os dois têm mesmo de ficar juntos; todavia, até que isso aconteça e a trama seja coroada com o merecido final feliz, esse casal está sempre às voltas de uma iminente separação.
Meghie faz a história avançar e retroceder em analepses e prolepses que explicitam a sensação de tempo fluido, exatamente como virá a ser o relacionamento de Michael e Mae. De certa forma, o romance dos personagens de Lakeith Stanfield e Issa Rae começa em 1984, momento em que Isaac, o tipo meio rude vivido por Rob Morgan, conhece Christina, a típica moça sonhadora, mas um tanto acomodada por ter vivido sempre sob os auspícios da mãe, Violet, papel de Marsha Stephanie Blake. Nesse primeiro segmento, espécie de introdução a pletora de subtramas em que se vai desmembrar o enredo, Chanté Adams é a mestre de cerimônia irretocável. Seu desempenho condensa a doçura e a languidez de Christina, prostrada diante de uma vida sem muita perspectiva no interior da Louisiana, e é a partir dela que a diretora urde as explicações de que o filme terá de se valer no terceiro ato, quando abre alas para que outra anti-heroína assuma o posto de mulher emancipada que toma as rédeas da própria vida ainda que tal atitude implique um grande prejuízo na vida pessoal.
Rae dá uma verdadeira aula de interpretação ao conseguir dosar o tormento silencioso de Mae, quase arrependida — como Christina cerca de quarenta anos antes — de ter esticado demais a corda da subida profissional em detrimento da realização no amor. Sua mãe não fora feliz ao ter feito tal escolha, e agora seria ela quem experimentaria na carne a maravilha e a aflição (sobretudo a aflição) de trilhar seu caminho rumo ao topo da carreira da fotógrafa, ofício que Christina também exercia, e da mesma forma que ela, sempre sozinha. A fotografia mencionada no título é uma descoberta de Michael, de quem se aproxima; os dois vivem uma paixão incandescente que, como o fogo, arde de uma vez e periga cessar tão logo se consuma: ele, igual a ela, só pensa na carreira e está prestes a se mudar para Londres.
Só com a proximidade do desfecho, Meghie amarra tudo de modo a fazerem sentido Michael, o registro dele sobre o passado da namorada e o segredo por trás da imagem, relacionado a Isaac. Despretensioso e narrativamente bem construído, “A Fotografia” têm um que de “Malcolm e Marie” (2021), mas com o sinal trocado e pegando muito mais leve na baixaria e nas cenas insinuantes. Se no filme de Sam Levinson abunda o pecado, aqui é a graça que emana de toda parte.
Filme: A Fotografia
Direção: Stella Meghie
Ano: 2020
Gêneros: Drama
Nota: 8/10