O vocabulário cínico de Ambrose Bierce

O vocabulário cínico de Ambrose Bierce

Um fato curioso sobre o cinismo é que o seu mais ilustre representante é, possivelmente, Ambrose Bierce, graças ao seu “Dicionário do Diabo”, ou “Vocabulário do Cínico”. É um caso hilário que o nome original, que fazia apologia ao demônio, coisa censurada pela religião, tenha sido substituído por esse título com grande força literária e, virtualmente, acadêmica.

De todas as definições apresentadas nesse maravilhoso dicionário, a solução dada por Ambrose para a explicação da palavra “eu” é uma louvação ao humor de alto nível e à inteligência e criatividade do escritor, mesmo que sua definição de escritor — a conheceremos ainda neste texto —, seja diferente do vetor que oriento. Para Ambrose, o “eu” representa “a primeira palavra do idioma, o primeiro pensamento da mente, o primeiro objeto de afeto”. Ali existe uma autoavaliação curiosa, mas a louvação do cinismo em seu mais alto grau, uma destilação do veneno literário como dádiva de poucos, encontra-se na sentença: “O uso franco mais gracioso do ‘eu’ distingue um bom de um mau escritor; este último o carrega à maneira de um ladrão tentando esconder seu butim”. Está dada a chave. É possível que, aos moldes dos estúpidos, descritos pelo próprio Ambrose nesse mesmo manual de significados, a saber, na página 98 (Edição virtuosa da Carambaia) — fica perto da palavra eu, distante uma única página, percebi ao olhar para o lado esquerdo —, alguns escritores superficialmente formados desprezem a força do cinismo na literatura e descartem a possibilidade de ler esse excelente exemplar que atesta a sanidade de um verdadeiro cínico.

Ambrose Bierce
Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce (Carambaia, 288 páginas)

Então quem é o escritor para o cínico? E quem é o cínico para o escritor medíocre? A resposta reside na tradução da palavra cínico que nos foi apresentada pelo próprio Ambrose Bierce no seu, agora categoricamente, útil “Dicionário do Diabo”. Nessa explicação, parece que lemos as frases ditadas pelo próprio ser obscuro para serem desenhadas pelas mãos do escritor, em letras de fogo, nas páginas de seu livro. Ele define o cínico como “Um canalha cuja visão defeituosa vê as coisas como elas são, não como devem ser. Daí o costume dos sicilianos de arrancar os olhos do cínico para melhorar sua visão”. Mais simples impossível. Obviamente o cínico não avaliza os contadores de histórias absurdas. Sua máxima literária deve ser: “É preciso que um grande escritor tenha vivido, em grande parte, a história que conta”. Sua metralhadora crítica pode atirar em todas as direções, como quando define estória com a frase profundamente correta que sintetiza a palavra como uma “narrativa costumeiramente mentirosa”.

Finalizando, esse era apenas um texto síntese sobre o fantástico dicionário de Ambrose Bierce, e sua função é apenas incentivar a sua leitura. Falemos sobre o escritor medíocre. Maus escritores são cheios de regras para comportamento de seus personagens. Não têm coragem de arriscar e não têm sangue nos olhos. Esse, o medíocre das letras, nas palavras do autor do “Vocabulário do Cínico”, é “o mais escandalosamente moral”.