Sobre o envelhecimento dos ídolos, das armas e das rosas

Sobre o envelhecimento dos ídolos, das armas e das rosas

A música sempre teve um poder impressionante de aglutinar e setorizar os grupos de jovens. Fenômeno cultural que remete aos primórdios das organizações sociais, sempre nos juntamos, em especial na adolescência e juventude, àqueles que amam o mesmo tipo de música que nós e, ali, nos dividimos no que se convencionou a chamar de “tribos”. Dos guetos da música negra e do som de origem ruralista, nascidos provavelmente, na transição do mercantilismo para o capitalismo, opondo música de preto e música de branco, o ocidente viu, geração a geração, os ritmos se transformarem, se mesclarem e conquistarem o mundo com diversas correntes musicais que, sempre, acabavam construindo o mesmo cenário: uma aglutinação de jovens com os mesmos anseios, ideais e imaginários.

Claro que, a partir dos anos 40, a história da música e da juventude, começa a tomar contornos muito mais evidentes. Ou, pelo menos, a ter mais registros. The Andrews Sisters, The Ink Spots, Django Reinhardt, The Pied Pipers, Bob Crosby, Billie Holiday e Nat King Cole são, apenas, alguns dos diversos nomes que chamavam a atenção de grupos e mais grupos de jovens que se dividiam entre seus ídolos, de acordo com a representatividade que sentiam em suas letras, sons e realidades apresentadas. Nascia, ali, a era das grandes estrelas mundiais. Em 1950, com Jerry Lee Lewis, Little Richard, The Everly Brothers, Etta James, Ray Charles, Chucky Berry e Elvis Presley, a “febre” da música jovem ganha outro patamar e, concentrada que era na América do Norte, começa a se espalhar pela Europa, Ásia e, aos poucos, pela América Latina. Por onde os movimentos musicais como Jazz, Folk, Country, R&B chegavam, tinham o estranho poder de sonoridade representativa.

Se nos lembrarmos que, movimentos mais violentos e simbólicos, na América do Norte, como o apartheid, trouxeram também o maior envolvimento de uma juventude muito mais politizada e engajada em causas sociais diversas, fica mais fácil entender por que a música era tão importante, especialmente, naquele momento! Os cantores, quanto mais famosos, mais davam vozes às dissonantes vozes de um mundo que tentava descobrir os lugares de tantas novas comunidades, grupos e aglutinações de jovens. Uns procurando seu lugar no mundo, justiça e igualdade social e outros assustados em perder seus lugares de privilégio, sem saber como seria esse novo mundo para o qual não se sentiam preparados. Era a música que os unia. Que mostrava quem estava, como diria Hemingway, “ao seu lado nas trincheiras”. O movimento musical ultrapassou oceanos e tomou forma nos outros continentes, com suas manifestações próprias, mas com as estrelas da música mundial seguindo como faróis para uma juventude cada vez mais curiosa, ansiosa e ávida por ser ouvida por meio das canções que a representava.

Dando um salto no tempo, podemos chegar aos anos 70, quando os artistas ganham status de deuses entre os homens! Capazes de representar os sentimentos humanos, condensar o pensamento de gerações inteiras e, mais do que politizar os pensamentos de grupos de jovens, passam a ser a representação viva de um canal entre o espírito do tempo contemporâneo, a denúncia das mazelas humanas, o grito dos silenciados pelos governos autoritários, totalitários e formados pela antítese da juventude que necessitava ser ouvida. Pink Floyd, Bob Dylan, The Doors, Janis Joplin, David Bowie, Queen, Rod Stuart, Marvin Gaye, Stevie Wonder, Led Zeppelin, Elton John e, claro, Beatles.

A cada geração, a sede pelo domínio da narrativa se tornava mais importante e os anos 80 e 90 consolidaram quem eram os grandes cantores de todos os tempos. Um imaginário geral de uma elite musical que sempre soube o que estava falando, mas que, com o avançar para os anos 2000, perdia força, gradativamente. O anseio dos jovens adultos da Geração Z não encontrava eco nos jovens cantores, que pareciam ter equalizado, ao menos em suas letras, a luta de classes e grupos sociais. Um dos grandes representantes da música negra, Michael Jackson, ressurge branco, colocando em xeque os lugares de luta de tantos artistas e grupos de jovens do passado. Havia, ainda, pelo que lutar? Teriam os deuses, deixado de enviar seus gênios, em forma de estrelas mundiais da música, representantes de tantas fases da juventude? Pequenos vislumbres como Nirvana, Pearl Jam e Amy Whinehouse pareciam esmolas enviadas para nos lembrar o quanto, um dia, tivemos nossas vozes ouvidas e replicadas.

Dos grandes músicos do passado, provavelmente, a última febre mundial foi uma banda de hard rock vinda de Lafayette, Indiana, nos EUA. O Guns and Roses, que lançou seu primeiro disco em 1985 e, no lançamento do segundo disco, já foi considerada a “banda mais perigosa do planeta”. Para os jovens nascidos após 1975, foi o primeiro (e último) fenômeno musical que tiveram idade para registrar. Nada era suficiente: estavam em todos os programas, em todas as rádios, tinham, sempre, quatro ou cinco músicas entre as mais pedidas das rádios de todo o planeta. Literalmente. Do Brasil ao Japão, a banda estava nas capas de todas as revistas, pôsteres vendidos nas bancas, programas de entrevistas, shows de outros artistas. Um meteoro que, provavelmente, só visto nos tempos de Beatles, Elvis, Led Zeppelin… De 1985 a 92, lançaram cinco discos. A banda se desfez e, por algum motivo, a nostalgia dos jovens dos anos 90 a manteve viva, mesmo desaparecida (com algumas tentativas de reativação da banda por seu líder, sem sucesso).

Em 2016, os três icônicos integrantes da banda reúnem-se para uma nova turnê: o vocalista Axl Rose, o guitarrista solo Slash e o baixista Duff Mackagan. A reunião é um sucesso estrondoso e roda o mundo, desde então, com um detalhe curioso de se ver: como se assistíssemos a um semideus perder seus poderes, o vocalista da banda, após décadas de abuso de sua garganta em drives, vibratos e falsetes, deteriora sua voz a cada vez que sobe ao palco, fazendo com que o público não saiba o que esperar de cada apresentação. Chegamos ao Rock in Rio 2022 e, após um show sofrível, em que parte do público vaiava e outra parte saia antes do fim, por não conseguir assistir à triste queda de um dos titãs da música mundial, a banda segue uma agenda de apresentações no Brasil e realiza, em Goiânia, um dos melhores shows da atual fase da banda. Fragilizado e, agora, ciente de sua fragilidade, o frontman da banda parece vibrar de alegria ao conseguir concluir cada música. Agradece, humilde, a compreensão da plateia e se doa, com tudo que pode, para tentar resgatar os velhos tempos, quando o panteão dos grandes músicos eram nossas vozes.

Muitos desses grandes nomes do passado seguem entre nós: Ozzy Osborne, Robert Plant, as bandas Kiss, AC/DC, Iron Maiden, os músicos principais do Pink Floyd… E todos, sem exceção, na ânsia de reviver, mais uma vez, os momentos de deuses da música mundial. Tentando, como figuras míticas em decadência, sugar um restinho do néctar que um dia provaram. Inconformados que a nova deusa pós-moderna, Tecnologia, com seu Twitter, Instagram, TikTok e tantas outras plataformas que deram aos novos grupos, conjuntos, coletivos e até indivíduos jovens, suas próprias vozes.

É provável que a música continue reunindo, à sua volta, grande parte de uma juventude ansiosa por representatividade. Mas o tempo dos semideuses musicais acabou. Eles foram depostos e devem, agora, entregar suas armas e recolher suas rosas.