Coisas estranhas se passam no mundo, mas nada se compara ao que pode acontecer nos meandros do pensamento do homem. O cérebro humano foi projetado para adequar-se a cenários que entende impróprios à manutenção da vida, justamente a fim de, num tempo infinitesimalmente limitado, oferecer alternativas de solução. Os problemas surgem quando esses episódios começam a se suceder com regularidade, em intervalos cada vez menores, exigindo reflexos mais e mais eficazes e naquele tempo exato, automáticos mesmo. Nosso cérebro é treinado para distinguir as situações de perigo iminente de ameaças ilusórias, provocadas por estímulos artificiais ou mesmo que poderiam ser interpretados como reais, dada a forte convicção que despertam, caso dos delírios e da paranoia. Contudo, a evolução cobra um preço. Temos de nos livrar de toda aquela descarga de hormônios e enzimas liberadas em quantidades industriais que, não tendo serventia, decerto podem provocar danos ao sistema, expediente que degenera em sensações nada prazerosas a exemplo de tonturas, enjoo e mesmo perda da consciência, em casos extremos.
A vida se nos apresenta todos os dias sob a forma de um quase invencível desafio — e, ao cabo de um tempo que pode ser muito longo ou curto demais, quem chega à solução do grande enigma de viver pode reivindicar essa vitória. Ao nos reconhecermos diferentes uns dos outros, ao nos sabermos propensos a reações desproporcionais se expostos a uma carga de estresse um tanto mais elevada, tomamos a atitude consciente de refrear nossos impulsos, procedimento que só se torna viável graças a uma malha de neurônios criados com o intuito de armazenar o maior número de informações possível, ocupando um emaranhado de feixes musculares cuja capacidade de se moldar e de se rearranjar ao sabor das conveniências nunca parou de impressionar cientistas mundo afora. Mais uma vez, admitindo-se ou não, eventualidades de natureza biológica têm o condão de definir a sorte de um indivíduo, que luta com as forças que tem para não ser tragado por seus próprios medos.
O sul-coreano Jang Jae-hyun expurga algumas de suas aflições em “O Mistério das Garotas Perdidas” (2019), espécie de tratado surrealista acerca das vulnerabilidades da pobre alma humana, tão dilacerada que não poder guardar suas dores e as partilha com o corpo, pouco mais resistente, mas também condenado a seus tantos limites. O roteiro de Jang abre de forma a já provocar impacto: Geum-hwa, a personagem vivida por Lee Jae-in, narra o próprio nascimento como se se recordasse de tudo, o que dá a sensação vívida de estranheza com que o diretor quer trabalhar, e o que se assiste corresponde ao texto. Um plano-sequência milimetricamente pensado — com direito a closes em elementos que reforçam a tensão da cena, como o sangue no chão depois de um parto, além de uma animação em 3D — explica sucintamente para onde vai a história, no começo dedicada a reportar a jornada de Geum-hwa, dificultada por causa de um detalhe anatômico que a constrange, ainda mais ignominioso quando se sabe como surgiu.
O filme avança para o lado dos fenômenos sobrenaturais com a entrada em cena do pastor Park, um jornalista tornado celebridade ao dedicar a carreira a apontar impostores que se valem da ingenuidade alheia para fundar igrejas e fazer fortuna. Interpretado com todo o esmero por Lee Jung-jae, Park vai a cerimônias budistas, católicas, adventistas e metodistas dirigindo um carro da moda, sempre trajando preto e fumando desbragadamente. Como uma dupla dinâmica de super-heróis de histórias em quadrinhos, o personagem de Lee Jung-jae conta com o reforço de Go Joseph, o auxiliar meio debochado do carismático David Lee.
“O Mistério das Garotas Perdidas” fica sério depois da metade, quando Jang inclui suas poéticas metáforas sobre eternidade —materializadas sob a forma de cervo, reconhecido como símbolo da vida além-mundo morte em várias manifestações religiosas ancestrais. O desfecho, com a morte de Na-han, o tipo meio delinquente encarnado por Park Jung-min, confirma as ideias de dharma, karma e reencarnação, referentes ao destino do espírito condicionado às atitudes do homem no plano terreno, tão caras aos povos do Oriente.
Filme: O Mistério das Garotas Perdidas
Direção: Jang Jae-hyun
Ano: 2019
Gêneros: Mistério/Suspense
Nota: 8/10