Ser sozinho pode até ter suas desvantagens — especialmente em determinadas situações —, mas decerto não pode haver nada pior que ser sozinho em se estando acompanhado. Cada homem é um universo muito particular, com suas ideias próprias, suas vontades próprias, necessidades as mais íntimas, tantas expectativas acerca da vida, ainda que saiba que pode nunca chegar a alcançá-las, e justamente por essa razão é tão difícil aceitar certos ardis do destino. Para o homo sapiens, a espécie mais bizarra achada sobre a Terra, é extremamente difícil submeter-se a qualquer regramento que se oponha a sua formação contestatória. Malgrado fundamental para a vida em sociedade, a fim de sermos capazes de suportarmo-nos uns aos outros, enquadrar-se tem muito pouco de aprazível. O homem reflete a natureza, de que também é parte, indisciplinada, selvagem, caótica. Conformarmo-nos com o mundo como o conhecemos, ao mesmo tempo em que temos a capacidade de rumar para outras vidas, em que as circunstâncias mais absurdas são o que pode haver de mais corriqueiro, sempre foi uma constante na vida do ser humano, que se vale do artifício a fim de, em largando tudo, abandonar sua própria vida e acessar o mais oculto de sua alma, no intuito de assimilar a conjuntura em que está inserido e, assim, encaminhar sua vida da forma mais adequada. Por óbvio, não raro surgem percalços no caminho, eventos deixam o terreno do previsível e os choques são inevitáveis.
Joe Wright é um mestre em capturar os detalhes imperceptíveis a olho nu do cotidiano e das relações mais privadas de indivíduos aparentemente banais. “Hanna” (2011) é um desses trabalhos que mudam a perspectiva acerca de concepções fundamentais da vida sem disfarce. Alegoria sobre núcleos familiares que se desintegram por algum motivo, o filme de Wright vai muito além do drama ao incorporar sequências cheias de movimento, como a própria vida se nos apresenta. David Farr e Seth Lochhead apostam num roteiro propositalmente confuso, que demanda algum tempo para que o espectador absorva a essência da história. A direção ousada de Wright é capaz até de levantar dúvidas quanto a materialidade de certas figuras: a personagem-título de Saoirse Ronan, uma das atrizes mais completas de sua geração, parece sempre com o rosto tão pálido, soterrado por melenas compridas e muito loiras, que muitas vezes mais parece um espectro. Uma sequência na abertura é responsável por delinear a ambiguidade fundamental da protagonista de Ronan ao exibi-la matando e estripando um cervo para logo depois a edição de Paul Tothill cortar para uma luta encarniçada com Erik Heller, o homem que a espreitava e que o texto de Farr e Lochhead leva a crer que seja seu pai. Ocasiões assim se prestam a uma espécie de treinamento, a fim de que Hanna esteja afiada para destroçar seus adversários quando chegar a hora, o que não tarda a acontecer. Detalhes muito específicos da vida da anti-heroína vão ficando menos nebulosos, e Heller, vivido com o devido alheamento por Eric Bana, demonstra uma preocupação aparentemente obsessiva com sua segurança, até que surge nas margens a sombra de Marissa Wiegler, uma agente graduada da CIA disposta a tudo para colocar as mãos nos dois.
Cate Blanchett encarna esse tipo perverso, mas respaldado por ampla margem de defesa ao cumprir sua tarefa sem nenhuma hesitação — embora assaltada por muitos questionamentos —: Hanna e o pai seriam inimigos públicos de primeiro escalão e o Estado americano já empenhou montanhas de dólares na tentativa de capturá-los. À medida que o enredo fica menos obscuro, despontam no horizonte dúvidas quanto ao verdadeiro interesse de Wiegler pelos dois, atraída pela oportunidade de liquidar alguma fatura do passado. Mas em que uma garota de verdes dezesseis anos, excepcionalmente culta — Ronan deveria ter calculado seu cachê pela quantidade de números que é obrigada a citar, até na hora de um possível (e desastroso) respiro romântico —, mas sem qualquer traquejo social, poderia ameaçar a loba vermelha de Blanchett?
Wright elabora esses diversionismos retóricos como poucos, e em “Hanna” a mensagem mais perturbadora, apenas sussurrada, concerne à dificuldade impingida a determinadas pessoas quanto a serem o que são. E esse postulado se aplica tanto à vilã de Blanchett como à própria mocinha de Ronan, a encarnação de uma pureza conspurcada.
Filme: Hanna
Direção: Joe Wright
Ano: 2011
Gêneros: Ação/Thriller
Nota: 8/10