Filme sombrio com George Clooney na Netflix vai te deixar paranoico por 105 minutos Divulgação / Mars Distribution

Filme sombrio com George Clooney na Netflix vai te deixar paranoico por 105 minutos

Empreender, superar dificuldades, encontrar uma atividade de que goste a ponto de fazer disso um trabalho, com todas as implicações emocionais que uma carreira bem-sucedida há de trazer — e traz mesmo —, é muitas vezes tarefa ainda mais árdua que desbravar o caminho da glória. O sucesso, a propósito, cobra seu preço com rigor, como se analisasse o que cada um pode pagar à vida por ter chegado ao topo. Sacrificam-se família, amigos, prazeres do corpo, momentos de necessária reconexão com o sagrado, e, por óbvio, o amor, sem o que, no fundo, não se chega a nada que se pareça com a vitória, que tem suas armadilhas tão particulares. Nessa conjuntura, a vaidade passa a ser uma pedra no sapato de qualquer um, professe a fé que mais se aproxime de suas convicções mais íntimas, principalmente se excessiva, e tem efeitos tão amplos, de alcance tão imensurável que nem nos damos conta. Um deles, quiçá o mais arrasador, o mais pernicioso, é o que provoca nas outras pessoas a reação imprevisível e desproporcional de nos atacar, como se para preservar a própria honra quanto a reconhecer uma suposta inferioridade, flecha envenenada rumo ao coração de quem ousa vencer. Tom Jobim (1927-1994) disse certa feita que, no Brasil, o sucesso alheio é ofensa pessoal. Talvez a questão se volte para um lugar um tanto mais fundo, mais insondável, que respeita ao vitorioso também: pode ser que a energia negativa que atraímos quando fazemos sucesso seja tão poderosa que, aliada a nossa própria vaidade, reúne todas as condições para nos aniquilar. Principalmente num meio já por natureza dado a tocaias e deslealdades.

O holandês Anton Corbijn destila as agruras de um tipo escuso e nada comum em “Um Homem Misterioso” (2010), que de lambuja põe a descoberto um lado menos óbvio de uma das celebridades mais visadas de Hollywood, que pelo que se pode confrontar com a história, ainda tinha muito a revelar de si mesmo e da forma como vê seu ofício. Ao longo dos anos, George Clooney foi agregando ao verniz de galã a profundidade de um ator cada vez mais plural, capaz de viver os homens malditos de que o cinema tanto se orgulha, e, para surpresa de alguns, tomando as rédeas do processo de uma ponta a outra ao protagonizar e dirigir seus próprios filmes, caso de “O Céu da Meia-noite” (2020), “Boa Noite e Boa Sorte” (2005) e o ainda inédito “The Boys in the Boat”, com estreia prevista para 2023. Clooney talvez seja o exemplo mais simbólico de um profissional do cinema plenamente imbuído do espírito de missão em trabalho ao ser capaz de aliar uma intuição quase mediúnica ao apreço à técnica e à experimentação, sendo nisso muito parecido com outro artista justificadamente mitificado no ramo, Clint Eastwood.

A direção de Corbijn dá a Clooney a oportunidade de ir abatendo um por um os clichês que lhe são dispostos no roteiro de Rowan Joffe, chance a que se agarra com vontade. Nas mãos de alguém menos zeloso, a história de um assassino altamente valorizado por criar seu próprio arsenal, meio perdido entre o remorso e a evidência de só saber se dedicar a esse gênero de serviço — em que, justiça se lhe faça, é um dos melhores — poderia redundar num carrossel de platitudes, irremediavelmente tedioso mesmo para o público mais chegado a essas tramas. Corbijn, no entanto, demonstra a firmeza necessária a fim de não tirar de perspectiva o fato de Jack, seu personagem central vivido por Clooney ser, sim, um criminoso, mas cheio das nuanças que lhe conferem o senso de humanidade que quase o redime. A esse propósito, também é louvável, com a licença do trocadilho, a ideia de atribuir à figura de um sacerdote o posto de melhor amigo do anti-herói de Clooney, obrigado a mudar de país, de hábitos e de planos ao concluir que descobriram seu grande segredo. Jack, que muda também de nome e passa a se fazer conhecer por Edward Farfalla, vai parar em Castelvecchio, povoado nos arredores de Verona, onde é involuntariamente recepcionado pelo padre Benedetto, de Paolo Bonacelli, sequência que tem lá a sua graça. Malgrado a vida de um e do outro terem enveredado por rumos diametralmente opostos, Edward e o padre Benedetto não se tornam exatamente amigos, mas se aproximam — na medida em que pode se dar a aproximação de dois homens de trajetórias tão díspares entre si, até que uma revelação do personagem de Bonacelli (que talvez passe em branco para o espectador menos atento) se presta à iluminação de que o matador tanto precisava para ter algum sossego.

Corbijn lida bem com as oscilações de humor de Edward e as incorpora na própria narrativa ao fazer o filme deslizar do sagrado para o profano no tempo de um frame. A entrada em cena de Chiara amolece ainda mais a casca grossa do forasteiro, malgrado ele saiba desde sempre que o namorico com a prostituta interpretada com rara beleza por Violante Placido pode acabar da mesma forma que seu relacionamento com a sueca Ingrid, de Irina Bjorklund, cujo assassinato foi a gota d’água para que encarasse a sério a possibilidade de mudar de vida. Como o desenlace da história explicita, as escolhas desastradas de Jack ao longo da vida amarram-no a um destino trágico, patrocinado por Pavel, o gângster encarnado por Johan Leysen, um psicopata que nutre por ele uma obsessão que resta por ser esclarecida.


Filme: Um Homem Misterioso
Direção: Anton Corbijn
Ano: 2010
Gêneros: Suspense/Crime
Nota: 8/10