O filme na Netflix que vai fazer sua alma transbordar

O filme na Netflix que vai fazer sua alma transbordar

Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais a permear a vida do homem. O pensamento do filósofo alemão assinala as muitas descobertas que fazemos ao longo de nossa jornada, uma cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória, como uma fonte inesgotável de sabedoria, que se projeta em nosso cotidiano à medida que conseguimos entender a força dessas revelações. A esse propósito, a irrequietude do homem frente ao passar do tempo, incansável, inclemente, cruel, fomenta nele a justamente a premência de não desperdiçar oportunidades. Em identificando possíveis margens para arrependimento e correção de uma conduta qualquer, o homem deve sem hesitação vencer a correnteza e salvar-se. A existência humana para Heidegger é um eterno vir a ser, no qual nada é imediato, tampouco definitivo, e a natureza do homem tem se redobrar os cuidados a fim de não se comprometer com os projetos errados, já que perder tempo é uma atitude que pode custar caro. A maneira como Heidegger entende o viver e, ainda mais extensivamente, a verdade da vida, apontam para uma conclusão tão poética como incômoda: devemos nos propor novos meios de agir incessantemente — e para tanto, esquecer é fundamental. Ninguém vai muito longe enquanto não toma a sério a ideia de deixar cada coisa, cada momento da vida no seu devido lugar, permitir que morra o que não tem mais lugar na vida e enveredar por outro caminho, quiçá mais difícil, mas sempre necessário. O passado deve passar. Pode parecer lógico, até redundante, mas apenas uma privilegiada minoria chega a tão óbvia conclusão.

Ozan Açiktan compõe outro de seus belos contos sobre a vida e seus pseudodilemas em “My Mother’s Wound” (2016), que como o título (não) diz, se refere a pesares de uma família inteira, transmitidos de geração em geração como uma praga cheia de suas artimanhas pronta para ser erradicada, desde que se disponha essa vontade, que se mantenha o passado bem longe da outra vida que se quer. E esse, claro, é o verdadeiro xis do problema, que o protagonista enfrenta com a maturidade possível para os seus dezenove anos. O roteiro de Açiktan junto com mais cinco colaboradores se desdobra sobre a infeliz trajetória de Salih, criado num orfanato em Zenica, a 70km ao norte de Sarajevo, capital da Bósnia e Herzegovina. Salih, composição delicada e precisa de Bora Akkaş, nascera em 1994, enquanto bósnios lutavam contra croatas e sérvios pela independência do país, conflitos que se estenderam de 1992 a 1995. A luta fratricida entre os três principais grupos étnicos a habitar a região deixou um saldo de mortos que varia de cem mil a duzentos mil, a depender da fonte que se pesquise, além, por óbvio, das tantas outras manifestações de barbárie que soem acontecer nessas circunstâncias. Quase tudo na vida de Salih é um mistério insondável; mesmo assim, ele consegue saber alguns detalhes sobre seu passado com Sadik, personagem de Süleyman Atanısev, o diretor da instituição onde passou de menino a homem. Sua nova jornada deve começar por Mirsad, o humilde sapateiro interpretado por Okan Yalabik.

A fotografia de Bogumil Godfrejów destaca o amarelo do sol da Bósnia, mesmo em ambientes fechados como a casa de Mirsad, onde Salih chega à cata das informações que foram passadas por Sadik. Aos poucos, o espectador descobre junto com os personagens o que Açiktan quer que contar sobre seu protagonista, dando ao filme a natureza de um jogo que só faz sentido dessa forma, com ambas as partes muito bem entrosadas. A cortesia do personagem de Yalabik contrasta flagrantemente com a rispidez de Mevlide, sua sogra. A personagem de Sabina Toziya percebe logo que aquele visitante é a ave de mau agouro prestes a fazer ninho na pouca sorte da familia e trata de enxotá-lo, mas Nerma, a dona de casa tagarela vivida por Belçim Bilgin, demonstra um interesse especial por ele, mormente depois que fica sabendo que o rapaz tem o mesmo nome que daria ao filho que não pode criar e cujo destino nebuloso é a dor de que fala o título do longa. Bilgin rouba a cena dando vida à mulher torturada por fantasmas de um passado que teima em não passar — e nem poderia, dado o negacionismo com que seus parentes tratam o problema.

A ação corta para a herdade de Borislav Miliči, o ex-soldado de Ozan Güven. Ao longo de sua temporada como caseiro na propriedade de Borislav em Prijedor, no extremo norte da Bósnia, Salih se afeiçoa ao novo patrão e sua mulher, Marija, de Meryem Uzerli, até que Nerma volta para o desfecho, que deixa incrédulo até o mais cínico dos mortais. A tragicidade da solução um tanto ex machina de que Açiktan se vale para concluir sua história ratifica o que se quis dizer ao longo dos 114 minutos de filme: que saiba morrer quem viver não soube.


Filme: My Mother’s Wound
Direção: Ozan Açiktan
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.