Quase perfeito, filme na Netflix vai acalmar alma, elevar o espirito e fazer o coração transbordar   Divulgação / Kross

Quase perfeito, filme na Netflix vai acalmar alma, elevar o espirito e fazer o coração transbordar  

Como o mais humano dos sentimentos, o amor tem suas armadilhas. Garante-se o próprio amor — muitas vezes em prejuízo do amor-próprio — a quem se ama, mas quase nunca se pode dizer com certeza inabalável que a outra parte nos devota a mesma afeição. Fica-se num impasse metafísico e autotorturante, a se especular sobre o que devemos fazer para de fato chegar ao coração de quem se ama, se em fazendo estamos mesmo interessados em conquistar a pessoa que cala fundo nas nossas emoções mais primitivas ou se se trata apenas de orgulho por não se admitir sequer a hipótese do fim ou ainda se o ser amado merece mesmo tantos sacrifícios, tamanha entrega, se não estamos sendo ingênuos demais, se nosso comportamento não está sendo tolerante demais, indulgente demais, e a simples melancolia da reflexão tem o poder de nos atirar no limbo cinzento das relações que não se sustentam, e o ciclo recomeça, com muito mais força e com ímpeto destrutivo renovado. Quando menos se espera, aquelas coisas todas que tanto nos molestavam e que julgávamos definitivamente resolvidas ressurgem, como sói acontecer quanto ao que vai ficando para depois.

O diretor indiano Vikas Bahl revela suas impressões sobre amores que não se realizam em “Queen” (2014), drama com notas solares em torno de um assunto universal: a vontade de fazer o amor dar certo, mesmo contra todas as evidências. O que mais encanta na história da garota de vinte e poucos anos largada pelo noivo às vésperas do casamento, mas que ainda assim embarca sozinha rumo à Europa a fim de celebrar uma lua de mel que não vai acontecer nunca é a despretensão, a forma como Bahl consegue fazer soar natural um enredo melodramático que raspa na tragédia ao passo que vai dando elementos para que sua personagem central viva as experiências necessárias para que se recomponha, vire o jogo e seja de fato a dona de sua história. Até que isso aconteça e o filme vibre numa frequência muito mais fulgurante e cheia de meandros retóricos, a protagonista absorve os perigos do novo meio em que circula, encontrando instintivamente as soluções para pequenos inconvenientes e grandes problemas.

A rainha do título do filme de Bahl é Rani, que ganha vida pela interpretação sensível de Kangana Ranaut. Depois dessa rasteira da vida, a mocinha de Ranaut, claro, chora as pitangas na cama e fora dela, fica sem comer de tristeza, capitula quanto às qualidades que sabe ter, releva os defeitos que de uma ou outra maneira lhe empatam. Tudo para que o roteiro escrito pela própria atriz em parceria com seu diretor e outros três colaboradores lhe prepare as reviravoltas que sacramentam afinal as mudanças que ela teria de encampar a fim de se metamorfosear de menina para mulher, processo dificultado pela superproteção da mãe, vivida por Alka Badola Kaushal, mas que conta com o incentivo contido do pai, de Yogendra Tikku. Uma vez que chega a Paris, cenas singelas e que primam pelo improviso, como as que mostram Rani entre maravilhada e meio nostálgica do amor que poderia ter tido e não teve ao admirar os casais que se formam quando a parte que falta chega de surpresa e dá cabo da solidão de quem contempla a beleza plácida do Sena, são plasticamente irretocáveis, além de servirem de reforço à intenção de Bahl de fazer a personagem acessar seu lado mais forte, quase autossuficiente. Por mais que ela mesma resista, essa rainha ocupa o trono que lhe cabe, valendo-se das observações sobre o comportamento de tipos como Vijay, funcionária do hotel em que se hospeda em Paris. Lisa Haydon dá um pouco mais de cadência à trama, que parece se perder em alguns passagens ao longo de mais de duas horas e meia. Antípoda de Rani, Vijay, também hindu pelo lado paterno — e por uma dessas coincidências de que a vida é feita tem o mesmo nome do ex-noivo, interpretado por Rajkummar Rao —, vive como se não fosse mais acordar entre lençóis amarfanhados e garrafas de champanhe vazias, indo para a cama com todo homem que lhe pareça atraente.

Abusando dos musicais, essa praga incontornável em todos os filmes indianos, definição por excelência de Bollywood, “Queen” acerta na mosca com a fotografia de Bobby Singh e Siddharth Diwan, que economiza nas cores quentes e privilegia tons terrosos e sombrios, a fim de denotar a personalidade introspectiva de Rani. A última sequência, também circunspecta sob a perspectiva estética, mas dramaticamente pulsante, fecha a jornada da mocinha com garbo, mas com igual dose de energia, graças à fisionomia tão expressiva de sua intérprete.


Filme: Queen
Direção: Vikas Bahl
Ano: 2014
Gênero: Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.