O desconhecido intriga e assombra o homem desde o princípio dos tempos. Já nas cavernas, os primeiros homo sapiens deixaram suas impressões acerca do que entendiam por manifestações de vida além do mundo, monstros que devoravam tudo o que encontravam pela frente, inclusive os raros exemplares da humanidade que ainda começava a despontar, e que ia aprendendo a lidar com mais esse obstáculo a sua tranquilidade buscando respostas na natureza e, por óbvio, no que estava fora de seu alcance. Buscar proteção junto aos deuses tornava-se parte da rotina, da mesma forma que escapar de feras sanguinárias, domesticar os animais menos indóceis, caçar, pescar, coletar os frutos comestíveis e tratar de estabelecer descendência numerosa e saudável. O universo era um pai amoroso, mas severo, que provia seus filhos do sustento diário, sem contudo descuidar de seu caráter repressor e punitivo, enviando a devida correção aos que se rebelavam e desmereciam seu zelo. Por seu turno, a comunidade que se ia formando tomava para si a responsabilidade de estender às gerações que a sucederiam os usos e as tradições que criam fundamentais para se viver em harmonia.
Nic Mathieu elucida alguns mistérios na relação do gênero humano com o que não se deixa ver — mas existe — em “Spectral”, ficção científica avessa a classificações ao mencionar a incerteza da vida neste e em outros planos, onde também grassam criaturas ressentidas, ferozes, sequiosas por usurpar espaços em que não são bem-vindas. Bebendo da fonte do videogame, essa é uma história que se esmera por reproduzir o sucesso de grandes momentos do cinema, especialmente os que aludem à aventura humana em cenários inóspitos, como outros planetas e conflitos bélicos. Há elementos mais ou menos óbvios que situam o trabalho de Mathieu em algum lugar entre “Falcão Negro em Perigo” (2001), visão de Ridley Scott acerca da baldada tentativa de invasão da Somália pelas tropas americanas, e “Alien — O 8° Passageiro” (1979), a epopeia do diretor em torno do ataque de organismos desconhecidos a um dos tripulantes de uma missão espacial. Mathieu emula a dramaticidade da obra de Scott de um modo um pouco mais acelerado, distribuindo as surpresas do roteiro, coescrito com George Nolfi e Ian Fried, com uniformidade maior ao longo dos 108 minutos de projeção. A história abre mostrando um soldado das forças especiais designadas para guerrear contra seres sobre-humanos diante de um espectro que se acredita maligno nas ruínas de uma cidade da Moldávia, na Europa Oriental, uma das nações mais pobres do mundo. Para tirar a prova, a DARPA, a agência do Departamento de Defesa norte-americano responsável por desenvolver estratégias e tecnologias para o enfrentamento de crises, manda Mark Clyne, um de seus melhores engenheiros, ao país. James Badge Dale personifica esse anti-herói imprimindo em Clyne a inquietação frente a uma das maiores cleptocracias da Terra, que viceja a olhos vistos graças a instabilidade política, nascida por seu turno da revolta em estado bruto como resposta ao desgoverno onipresente. Essa efervescência social ameaça degringolar em guerra civil, e a contribuição do personagem de Dale, óculos capazes de detectar a movimentação dos ectoplasmas adquire importância fundamental uma vez que esses seres híbridos, capazes de transitar entre múltiplas dimensões, estão dizimando os militares americanos.
“Spectral” aposta no tropo do inimigo sob a forma mais abstrata possível para elaborar seus comentários a respeito do encaminhamento da política externa dos Estados Unidos, quando outro eminente cineasta americano é chamado à discussão. O filme de Mathieu também tem muito do Francis Ford Coppola de “Apocalypse Now” (1979), principalmente depois da entrada em cena de Fran, a agente do CIA interpretada por Emily Mortimer, que quebra a monotonia do idealismo oco de Clyne. Como se pode supor, é o pragmatismo dessa mulher meio ambígua que salva a humanidade, e nisso a trama puxa para “A Chegada” (2016), a distopia de Denis Villeneuve, um dos mais sofisticados diretores de todos os tempos.
Filme: Spectral
Direção: Nic Mathieu
Ano: 2016
Gêneros: Ação/Ficção científica/Suspense
Nota: 8/10