Quebra-cabeça premiado da Netflix vai te obrigar a pensar Jean-Louis Vialard / Netflix

Quebra-cabeça premiado da Netflix vai te obrigar a pensar

A vida é uma sucessão de últimos momentos, por mais que nunca possamos nos lembrar de todos eles — e a verdade é que a maioria não tem relevância nenhuma. Caminhando em círculos, o homem acaba por chegar à beira de um precipício, onde só lhe cabem duas escolhas: pular ou buscar o caminho que o conduza a um destino melhor.

Mesmo cheio de morte, “Cities of Last Things” (2018), de Wi Ding-ho, diretor malaio radicado em Taiwan, é uma ode à vida. O quinto longa-metragem de Wi, vencedor do prêmio de Melhor Filme no Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, é uma história que se vale brilhantemente do conceito de tempo elástico, indo e voltando ao longo da narrativa, reforçando a noção de que a vida, como disse Vinicius de Moraes (1913-1980), é a arte do encontro — embora haja tanto desencontro pela vida, como o Poetinha mesmo continua. A trama reúne vários exemplares de tipos fracassados, que ficam pelo caminho, não deixam nada nem levam consigo coisa alguma de ninguém, e viver vai se tornando assim só uma sequência de perdas.

“Cities of Last Things” tem início com o suicídio de um personagem desconhecido; a partir de então, a história segue, sem ordem definida, se debruçando sobre três eventos na vida de Zhang Dong Ling, interpretado por Jack Kao. Wi dá a seu trabalho um andamento tripartite, cada qual com seu gênero próprio: o primeiro, uma ficção científica, é ambientado em 2056, quando nada mais pode dar certo e reina a distopia; o segundo é um filme noir que esmiúça o desempenho de Zhang quando ele era policial; e o terceiro, um enredo melodramático que se concentra num inusitado encontro do menino Zhang com um mafioso.

A paranoia de se controlar a conduta e a própria vida de todos os cidadãos, bem como a exortação a que se preserve e se louve o estar no mundo, com alto-falantes bradando mensagens de fundo pseudomotivacional, como as que apregoam o caráter pouco nobre do suicídio, ou as que recomendam uma atitude positiva diante das vicissitudes, lembram a distopia de obras clássicas dessa natureza, a exemplo de “1984”, livro de George Orwell (1903-1950) publicado em 1949, levado às telas justamente em 1984 por Michael Radford. A conclusão para tanta vigilância é lógica: a autoimolação só é tão temida porque é corriqueira.

Andando casmurro pelas ruas frias de Taipei ao cair da noite — e até nisso Wi Ding-ho pensou: cada um dos três segmentos que compõem o roteiro consiste na continuidade do anterior, malgrado estejam à parte no tempo —, Zhang é designado a assistir Shi Zi Wei (Stone), um ministro de Estado, internado num hospital. No caminho, tem um entrevero com a mulher, Yu Fang (Huang Lu), que apresenta um número de dança com outro homem. Depois de aprontar ele mesmo um show, agredindo o sujeito e recebendo a devida reprimenda, sai dali meio atordoado, até que um cafetão o alcança e lhe mostra fotos das garotas que gerencia, e uma em especial o intriga: a prostituta se assemelha muito a uma garota que ele conhecera quando mais novo. Como a tecnologia superara todas as expectativas, talvez se trate da mesma pessoa, submetida a tratamentos com células-tronco ou provavelmente seja até mesmo um clone dela.

Muitos anos antes, Zhang, agora vivido por Lee Hong-chi (de “Longa Jornada Noite Adentro” [2019], dirigido por Bi Gan), flagra a infidelidade da esposa ao passo que rejeita participar de um esquema de recebimento de propina em seu departamento, gesto que o faz ser visto pelos colegas como um potencial delator. A tensão só tem algum escape quando Ara, personagem de Louise Grinberg, que ele conhecia por já tê-la prendido numa outra oportunidade, cruza o seu caminho. Em uma sequência anterior, Zhang, agora na pele de Xie Zhang-Yin, é visto como um moleque mal-encarado, detido junto com Big Sister Wang, uma performance memorável de Ding Ning, que lhe conferiu o Golden Horse de Melhor Atriz Coadjuvante, uma das maiores láureas para atores asiáticos. Essas duas figuras nebulosas passam a ter uma história em comum.

Sem receio de levar sua intrincada narrativa até o desfecho sibilino, quase nonsense, “Cities of Last Things” espalha todas as peças de seu imenso mosaico e nos desafia a colocá-las todas juntas, de modo que aquele todo faça algum sentido. Mesmo quem passa os 106 minutos de duração do longa sem desgrudar os olhos da tela tem dificuldade de acreditar que aquela seja uma história de amor, que passa pelo espectador tão rápido que ele não o nota. Como era no distante século 20, em 2021 ou 2056 o amor continua a ser o ridículo da vida.


Filme: Cities of Last Things
Direção: Wi Ding-ho
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Crime
Nota: 9/10