Do diretor Amélie Poulain, novo filme francês da Netflix é uma das grandes estreias de 2022 Bruno Calvo / Netflix

Do diretor Amélie Poulain, novo filme francês da Netflix é uma das grandes estreias de 2022

Parece que o cinema quer nos fazer refletir sobre as artimanhas da tecnologia. De quando em quando, surge um filme levantando um tema que, embora gasto, torna-se cada vez mais urgente no dia a dia do cidadão comum. E se as máquinas, servindo ao homem com certa regularidade   desde pelo menos 1698 — quadra da história em que o engenheiro militar inglês Thomas Savery (1650-1715) sofistica o mecanismo já desenvolvido de maneira rudimentar pelo matemático e mecânico grego Heron de Alexandria (10-80) e cria a máquina a vapor — resolvessem, afinal, cobrar a fatura e, pior, fossem ainda mais longe, aprisionando-o em sua própria casa, em condições extremas, passando calor, sofrendo com um frio inclemente, restringindo-lhe acesso à comida, tudo visando ao mesmo objetivo que nós, ter o mundo nas mãos? Como poderíamos nos livrar de adversários muito mais vigorosos, mais velozes, dinâmicos e inteligentes, capazes de milhares de combinações para um único problema, dotados de força o bastante para derrubar alguém com um movimento quase imperceptível, milimetricamente calculado, e o principal, tornados tão sábios quanto o mais erudito dos homo sapiens, com a grande vantagem de nunca terem de envelhecer para tanto? Será que a Revolução Industrial, a era digital e vida cibernética teriam valido a pena?

Essas e uma infinidade de outras perguntas emergem à superfície em “Bigbug”, bem-humorada ficção científica com que o diretor francês Jean-Pierre Jeunet suscita a reflexão do público quanto aos perigos do incessante progresso digital, um caminho sem volta, mas que demanda parâmetros. O roteiro de Jeunet e Guillaume Laurent faz uma espécie de releitura, perpassando o nonsense e burlesco, do argumento de Alex Garland, diretor de “Ex-Machina: Instinto Artificial” (2014), privilegiando o humor, situações desabridamente farsescas e que descambam para certa escatologia, ao passo que o britânico refina a tensão contida no mote central ao limite, compondo uma das melhores tramas do gênero na história do cinema contemporâneo. No caso muito específico de “Bigbug”, ninguém tem a menor pretensão de fazer insinuações a respeito de como dar cabo de uma discussão tão filosoficamente vasta, e é esse descompromisso com a lógica que faz a narrativa sobressair.

Famoso pela comédia romântica “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (2001), Jeunet faz desfilar por um cenário exíguo, claustrofóbico, mas cujo colorido é destacado pela fotografia de Thomas Hardmeier, sua galeria de tipos impossíveis, a começar por Alice, a dona de casa amarga de Elsa Zylberstein. Recém-separada de Victor, o personagem de Youssef Hajdi que resolveu assumir o caso com Jennifer, a secretária vivida por Claire Chust, Alice releva a indiferença da filha, Nina, de Marysole Fertard, adotando cuidados para com a casa que beiram a paranoia. Esse é o gancho para que entrem na história Einstein, o robô cujo nível de inteligência obedece a ordens humanas, dublado por André Dussollier, Monique e Greg, os androides de Claude Perron e Alban Lenoir, além de Yonyx, o híbrido com corpo metálico e cabeça humana que ganha vida na interpretação de François Levantal, e da mascote de Nina.

Jeunet apresenta de forma convincente o episódio em que todos esses personagens se reúnem na sala da personagem de Zylberstein, junto com Max, o malfadado candidato a novo parceiro de Alice, papel de Stéphane De Goodt; Léo, seu filho, de Hélie Thonnat; e Françoise, a vizinha intrometida encarnada por Isabelle Nanty, valendo-se de enquadramentos pouco usuais, que realçam a interação entre os atores sem que os novos arcos dramáticos que se vão avultando percam importância, técnica muito presentes em trabalhos de Robert Zemeckis a exemplo de “O Voo” (2012) e “Forrest Gump: O Contador de Histórias” (1994). No momento em que Victor e Jennifer têm de deixar a casa para se dirigirem ao aeroporto, rumo ao paraíso que elegeram como o início de uma vida nova, bem longe da anfitriã e da filha do ex-casal, o sistema de segurança chefiado por Yonyx interdita as todas as portas porque o meio externo apresenta grau de risco desaconselhável para a vida dos moradores e dos visitantes. Ou seja, máquinas decidem como o homem deve se comportar, não o contrário.

Jeunet sofistica a premissa, adicionando ao caldo outros arcos dramáticos, e evidenciando ressentimentos e relações inconfessadas entre pessoas e os dispositivos de inteligência artificial que os cercam. Os seres humanos de “Bigbug” deixam à mostra uma face meio nebulosa, ao passo que máquinas, irritantemente cartesianas, ou são vilãs como Yonyx, ou se revestem da bondade ingênua de Einstein ou do bom-mocismo galante do personagem de Lenoir. O plano de Victor para, enfim, libertá-los é a grande reviravolta do enredo, instante em que o diretor nos convence de que há autômatos mais sensíveis que muita gente, e muita gente bem mais cruel que muito exterminador do futuro.


Filme: Bigbug
Direção: Jean-Pierre Jeunet
Ano: 2022
Gêneros: Ficção científica/Comédia
Nota: 8/10