Você não viu, mas deveria, suspense argentino da Netflix tem 100% de avaliações positivas Divulgação / Cimarron Cine

Você não viu, mas deveria, suspense argentino da Netflix tem 100% de avaliações positivas

Tem se tornado um hábito estabelecer uma espécie de rixa entre o cinema argentino e o brasileiro, querela absolutamente fora de propósito, uma vez que a produção de filmes deste nosso vizinho é anos-luz mais avançada, em todos os sentidos. “La Misma Sangre”, uma vez mais, confirma a regra.

O trabalho do diretor portenho Miguel Cohan, de 48 anos, é outro filme a deixar clara a diferença entre a concepção ampla que eles têm do expediente cinematográfico e a pífia ideia que ainda fazemos sobre o que seja bom cinema — mesmo que, faça-se-lhes justiça, cineastas brasileiros tenham aprendido, a duras penas, o que vem a significar rodar um filme, isso para aludir ligeiramente ao diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981), que pregava a máxima de uma câmera na mão, uma ideia na cabeça. Glauber era um em um milhão: ele, sim, podia, num dia em que acordasse inspirado, pegar na super oito e registrar alguma coisa que, com certo grau de aprimoramento, teria a aura de obra de arte. Muito antes de se tornar o responsável por filmes essenciais na história do cinema brasileiro, como “Barravento” (1962), “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), e “Terra em Transe” (1967), trampolins para, finalmente, chegar à excelência de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1968), pelo qual ganhou a Palma de Ouro de Melhor Diretor no Festival de Cannes do ano seguinte. Isso para não falar nos dez curtas por meio dos quais já vinha experimentando a linguagem que consideraria a ideal para aplicar a cada um de seus roteiros, desde 1959, quando ainda era um aluno desconhecido do curso de ciências jurídicas da Faculdade de Direito da Bahia, hoje Universidade Federal da Bahia. Nem todo mundo pode ser Glauber Rocha e, vez ou outra, o cinema brasileiro faz um gol de placa, deixando de lado justamente o cinema de protesto, tão caro a Glauber, e investindo nas muitas histórias que merecem ser contadas, grande parte delas imitadas da vida como ela é, como se observa no primoroso O Lobo Atrás da Porta (2013), de Fernando Coimbra, releitura do famoso caso da Fera da Penha, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1960, e o ficcional “O Outro Lado da Rua” (2004), de Marcos Bernstein, um noir nada convencional estrelado pelos veteranos Fernanda Montenegro, Laura Cardoso e Raul Cortez (1932-2006). Mas volto ao leito.

“La Misma Sangre” (ou “o mesmo sangue”, em tradução literal), lançado em 28 de fevereiro de 2019, se vale, intencionalmente ou não, de um dos baluartes da arte dramática dos Pampas cisplatinos a fim de segurar a narrativa até o final, o que, por óbvio, se mostra um grande acerto. Oscar Martínez, muito mais constante que Ricardo Darín, entrega tudo o que lhe exigem, e pode ser considerado, sem favor nenhum, um dos maiores intérpretes de seu tempo, como também se vê em O Cidadão Ilustre (2016), de Gastón Duprat e Mariano Cohn. No filme de Miguel Cohan, Martínez vive Elías, subitamente encarregado dos negócios da família depois da morte misteriosa do pai. Sonhador além do aconselhável, Elías não se conforma em seguir a trajetória do velho, quer mais. A fim de dar uma guinada no comércio de queijos que mantém na herdade que o pai lhe deixara, o protagonista de “La Misma Sangre” toma um empréstimo atrás do outro, se endivida, se encalacra e a única saída que consegue vislumbrar é persuadir Adriana, a mulher com quem vive um casamento meramente figurativo já há algum tempo, a lhe empenhar a quantia de que precisa. Adriana, papel de Paulina García, coadjuvante que ilumina qualquer filme, não tem nenhuma intenção de ajudar Elías, fazendo menção explícita ao fato de não serem mais um casal, o que não o incomoda. O que se tem na sequência é uma lavação de roupa suja executada com toda a classe de dois grã-finos na meia-idade, sem alterações de voz que escapam ao controle, sem bofetadas nem braços torcidos, uma ode aos amores brutos e defuntos, à luz de “Garota Exemplar” (2014), dirigido por David Fincher, ou “Rebecca, a Mulher Inesquecível” (1940), de Alfred Hitchcock (1899-1980). O detalhe da briga se dar na cozinha industrial em que Adriana fabrica os quitutes finos que prepara sob encomenda acaba sendo providencial para Elías: no meio da discussão, o colar de Adriana enrosca na engrenagem de uma das máquinas e, malgrado ela implore pela ajuda do marido, ele a deixa morrer degolada, certo de que assim conseguirá, afinal, usar o dinheiro do seguro de vida dela para honrar seus compromissos. O genro de Elías, Santiago (Diego Velázquez), casado com Carla, bem conduzida por Dolores Fonzi, começa a desconfiar de que o sogro tem algum envolvimento na morte de Adriana.

A partir desse ponto, tem início o segundo ato do filme, marcado por um jogo de gato e rato em que, apesar de não terem todos o mesmo sangue, os personagens pertencem a um clã em comum e, ainda assim, é impossível existir alguma chance de coesão entre eles. Por mais que se policie, Santiago não consegue deixar de nutrir suspeitas a respeito do sogro, o que por sua vez, enfurece Carla, apesar dela saber que o pai está verdadeiramente preocupado é em quitar seus débitos, sendo a identificação do culpado pela morte da mulher, claro, a última de suas preocupações. Nessa altura da narrativa, cresce a figura de Santiago, que se dedica a averiguar os indícios de um provável crime espontaneamente. Na verdade, os cinco — Elías, Adriana, Carla, Santiago e mais um personagem — estão imbricados numa subtrama macabra, em que cada um deles desempenha uma dada função.

É por aí que Cohan vai desatando os últimos nós da teia em que estão inseridos com mais força Elías, a filha e o genro, os três vítimas, em diferentes proporções, de um mesmo evento funesto, circunstância da qual não se livram, como atesta a sequência final do longa, todos patologicamente semelhantes no que têm de mais condenável, de mais abjeto. Com trabalhos a exemplo do que se depreende de “La Misma Sangre”, Miguel Cohan prova que o cinema argentino segue dispondo de muita lenha para queimar. Esse thriller aparentemente inócuo, inofensivo, despretensioso, revela o quão original o cinema pode ser, ainda que muitas vezes parta de argumentos nada revolucionários. Aula de como se fazer um bom filme, Glauber Rocha decerto louvaria as muitas qualidades desses gringos.


Filme: La Misma Sangre
Direção: Miguel Cohan
Ano: 2019
Gênero: Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.