Filme brasileiro, considerado o melhor suspense da história do cinema nacional, está na Netflix Divulgação / Imagem Filmes

Filme brasileiro, considerado o melhor suspense da história do cinema nacional, está na Netflix

É inegável a influência de casos próprios da crônica policial no excelente “O Lobo Atrás da Porta”, do diretor paulista Fernando Coimbra. O filme, cuja estreia se deu em outubro de 2013, conta uma história que poderia ter se passado há dois minutos, ou mais de 60 anos atrás.

Em 1960, o Brasil foi colhido pela curiosidade mórbida — e, em especial, o Rio de Janeiro, e a Zona Norte com ainda mais força — em torno da figura de Neyde Maria Maia Lopes, uma moça de 23 anos, aparentemente normal. A história da mulher apaixonada por um homem casado e que, depois de iludida e abandonada por ele, resolve sequestrar e matar a filha do amante, é retratada com fidedignidade assombrosa por Coimbra, que adiciona alguns elementos ficcionais à sua trama, a fim de conferir ao enredo algum respiro.

Digna de figurar entre os muitos episódios dissecados por Nelson Rodrigues (1912-1980) em “A Vida Como Ela É”, coluna que o escritor mantinha no jornal carioca “Última Hora”, a história, um romance que degringola em barbárie, seduz o público justamente por seu aspecto escatológico — o crime, segundo a voz rouca das ruas, alude ao fim dos tempos. O jornalismo marrom, empestando a sociedade desde sempre, tratou logo de arrumar um epíteto para Neyde, que desde então virou a Fera da Penha, bairro periférico onde a assassina morava, instantaneamente alçado a lugar de peregrinação para gente de todas as partes do Rio, a maioria ávida por justiçar o homicídio da garota, mas alguns, claro, curiosos a respeito daquela figura meio abobalhada, incrédulos diante do terror do delito, carecendo vê-la com os próprios olhos e só aí tirar alguma conclusão. Entre esses, muitos nutriam por Neyde um misto de respeito e admiração, mormente solteironas que em alguma medida se identificavam com seu drama, o drama da amante que nunca pode ser mais que a outra, condenada a uma vida incompleta.

A Fera da Penha em “O Lobo Atrás da Porta” é Rosa Maria Corrêa, 22 anos, em tudo homóloga à desventurada Neyde, exceto na aparência, dada a beleza quase imaculada de Leandra Leal, que vive a personagem central do filme. Em seu primeiro longa-metragem, Fernando Coimbra expõe as dores de uma mulher a princípio doce, mesmo submissa, que se despenca de Marechal Hermes, nos cafundós da Zona Norte, para a Central do Brasil, no coração da Cidade Maravilhosa. Durante uma das viagens, Rosa conhece Bernardo, fiscal dos trens, numa das estações supervisionadas por ele. Inicialmente, é do personagem de Milhem Cortaz que se depreende o aspecto predador, ao literalmente perseguir Rosa até encontrar a oportunidade perfeita a fim de interpelá-la. Desesperada por um gesto de afeto que reconheça sincero, Rosa aceita tomar uma carona com ele e, algumas cenas adiante, os dois estão na cama.

A força do roteiro, repleto de diálogos que realçam a naturalidade das atuações, bem à Nelson Rodrigues mesmo, também se torna mais evidente graças a um elenco afinado e talentoso. Além de Leandra e Cortaz, se destacam Fabíula Nascimento, Juliano Cazarré e Thalita Carauta, impagável, primeiro numa sequência que serve como pista falsa a fim de dispersar o espectador, e depois exercendo a veia cômica com que se consagrou em programas humorísticos na tevê.

O envolvimento clandestino de Rosa e Bernardo é confuso. Disputando com empenho o título de vilão do filme cabeça a cabeça, os personagens de Leandra e Cortaz mantém um relacionamento harmonioso até metade da história, quando, afinal, Rosa é declarada a antagonista de fato. Ao rasgar a fantasia de boa moça, verdadeiramente enganada por um homem 10 anos mais velho, e se considerar merecedora de reparação, Rosa passa a deixar crescer seu lado psicopata, vingando-se em especial de uma medida do ex-amante, repulsiva. É a partir desse ponto da narrativa que decide avançar, como a besta a que o título faz referência, sobre Clara, de Isabelle Ribas, a filha de Bernardo e Sylvia, vivida por Fabíula Nascimento.

O desfecho de “O Lobo Atrás da Porta” escandaliza, ainda que não se valha de imagens explícitas — opção acertada do diretor, e verdadeiro bálsamo frente ao rio de sangue de produções similares dos Estados Unidos, que privilegiam o gore desabridamente. Malgrado conte uma história de terror, e tanto pior se nos lembramos que inspirada num evento real, o filme de Fernando Coimbra segue elegante do princípio ao fim, comparável, sem nenhum exagero, aos mestres do thriller psicológico que dispensavam as incontáveis pirotecnias cênicas do gênero, a exemplo de Alfred Hitchcock (1899-1980), Stanley Kubrick (1928-1999) e Brian de Palma.

Outro golaço no trabalho minucioso de Coimbra é ter atentado para a importância das locações. O filme é quase inteiramente rodado em cenários reais, como o Morro da Providência, no centro da cidade; Marechal Hermes e Encantado, bairros da porção norte do Rio; além de algumas localidades na Baixada Fluminense. Detalhes sutis como esses, aliados a recursos propriamente técnicos, a exemplo do uso dos enquadramentos mais adequados a cada sequência e da montagem, fazem de “O Lobo Atrás da Porta” um filme singular, que se propõe a entender o lado selvagem do gênero humano, capaz de ser despertado em qualquer pessoa sujeitada a humilhações e violências abomináveis.


Filme: O Lobo Atrás da Porta
Direção: Fernando Coimbra
Ano: 2013
Gênero: Suspense/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.