Versões de trabalhos literários densos, que examinam minuciosamente assuntos delicados, controversos, relegados a um esquecimento proposital correm um risco substancioso de, além de não conseguir sequer arranhar o verniz da importância histórica, não passar de uma exaltação pretensiosa, megalômana (e enfadonha) de eventos históricos diluídos quase por inteiro pelas brumas do tempo. É justamente aí que entra a natureza fantástica do cinema, capaz de transformar quase tudo em que toca em boas histórias, plenas de referências literárias, marcadas pelo ótimo aproveitamento do cenário, elenco azeitado e fotografia impecável, elementos que sem dúvida colaboram muito para a absorção orgânica de tramas espinhosas, que enchem os olhos do espectador de beleza e de lágrimas. Parece que quanto mais um enredo preza pela dramaticidade exagerada, quase caricata, mais fica o cinema quanto a aparar essas arestas narrativas, fazendo com que o resultado soe como a melhor alternativa, como se não houvesse possibilidade melhor para traduzir tudo o que vai na fria página em calor, em movimento, em luz, em força, em vida.
O diretor brasileiro Vicente Amorim escapa das duas armadilhas e faz de “Corações Sujos” um relato comovente de como japoneses radicados no Brasil desde o começo do século 20 viram a merecida derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Entendendo-se que o filme se passa quando do desfecho da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou seja, há mais de sete décadas, num tempo sem informação instantânea, em que o telégrafo era o máximo de sofisticação a que se podia chegar, não é difícil compreender parte do choque dos moradores das colônias de imigrantes nipônicos dispostas por todo o Brasil, de Norte a Sul. Amorim situa seu trabalho no centro-oeste paulista, região que experimentou um período de inegável prosperidade graças a introdução da mão de obra japonesa, farta, disciplinada, incansável. Os problemas começaram mesmo com o fim das batalhas e a necessidade de se encarar os fatos, que aos poucos foram apontando que os boatos sobre a rendição do imperador Michinomiya Hiroíto (1901-1989) eram mesmo verdadeiros. Considerado um descendente direto da deusa do Sol, Amaterasu, a ninguém era concedida a honraria de tocar ou ao menos olhar o soberano, e o tratamento a que os brasileiros passaram a sujeitá-lo era simplesmente inadmissível. Hiroíto deveria reinar para sempre, nunca sentiria o gosto amargo da derrota e o Japão nunca teria em seu histórico o peso de ter perdido logo a série de combates em que entrara para deter o avanço do modelo ocidental de governo, eminentemente democrático, com ênfase na liberdade de expressão, no direito à opinião e, principalmente, ao voto, que teria igual valor a despeito da origem do indivíduo. Para alguns estudiosos, há a chance de boa parte daquelas pessoas nunca ter compreendido de fato onde o Japão se situava na contenda, o que amenizaria a culpa de Hiroíto, que não só permaneceu vivo como foi mantido no trono, ao contrário do que se passou com Hitler e Mussolini, os outros dois líderes das potências que compunham o Eixo, que lutou contra os Aliados, formados por Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética e França.
O roteiro de David França Mendes reforça esse ambiente romântico, em que a vida acontecia num ritmo próprio, elaborando a história de Takahashi, o fotógrafo interpretado por Tsuyoshi Ihara. Ao saber que figuras como Sasaki, de Shun Sugata, espalham a notícia do suposto fracasso de Hiroíto, comportamento entendido como uma traição à pátria, ele vai atrás dessas pessoas, primeiro para lhes sugerir o ritual do haraquiri, o suicídio não apenas permitido como estimulado, para que se preservasse um fio de decência de quem era considerado uma vergonha à comunidade. Uma vez que o acusado o refutava, Takahashi concluía o serviço ele mesmo, ainda que a atuação do subdelegado vivido por Eduardo Moscovis não facultasse a ninguém sobrepor-se ao ordenamento jurídico do território nacional.
Elementos como a fotografia de Rodrigo Monte, mesmerizante, são decisivos quanto a se absorver a profundidade de um tema ainda encarado sob a perspectiva da controvérsia e da ignomínia para os japoneses, mas fundamental para se manter o fantasma do totalitarismo congelado no tempo.
Filme: Corações Sujos
Direção: Vicente Amorim
Ano: 2011
Gêneros: Drama/Épico
Nota: 9/10