Ganhador do Oscar, suspense psicológico com Edward Norton na Netflix vai te atordoar até a última cena Divulgação / Paramount Pictures

Ganhador do Oscar, suspense psicológico com Edward Norton na Netflix vai te atordoar até a última cena

Lamentavelmente, o expediente delituoso tem características de que nenhuma outra atividade humana dispõe. Imbuídos de uma lógica própria, em que nada parece ter valor se não aquele confrontado ao da autorrealização mediante um qualquer ardil lesivo a alguém, criminosos passam por cima de quem quer que seja para chegar a seus objetivos escusos. Igualmente lastimável é saber que advogados, que se formam e ganham a vida para manter o cidadão comum longe do submundo da ilicitude, não raro cedem à tentação de misturar leis e muitas das suas violações para se projetar na carreira. Essa é uma categoria profissional que conhece como poucas os meandros do poder e as brechas na lei quanto a transformar inocentes em culpados, e vice-versa, sem nenhum prurido moral. Imersos num mundo de versões que têm muito mais importância do que a própria verdade, aos advogados estariam ser proibidos os restaurantes da moda, onde se juntam quase todos os figurões que recorrem a suas artimanhas a fim de continuar com seus esquemas bilionários, desviando recursos que, se aplicados com prudência e honestidade, mudariam a saúde e a educação de muitos.

“As Duas Faces de um Crime” (1996), de Gregory Hoblit, é um thriller à moda antiga com suas menções à religião e à loucura. O diretor se vale do encontro fortuito de um advogado de defesa vaidoso e exibicionista com a manchete de jornal que muda sua vida para começar a urdir a trama repleta de mistério e reviravoltas pouco críveis, mas que certamente mesmerizam até o espectador mais calejado. Baseado no romance homônimo de William Diehl (1924-2006), o filme de Hoblit faz do choque desse profissional tarimbado o gatilho para a apresentação de diversas outras circunstâncias em que as noções de

certo e errado, honra e ignomínia, pundonor e falta de dignidade misturam-se do jeito mais promíscuo, fazendo com que a balança penda sempre para o lado menos nobre dos muitos desdobramentos do crime bárbaro que sustenta 131 minutos de projeção. Quando se acredita que o enredo principia a encontrar um norte, uma evidência qualquer que o vá fazer tomar um atalho para o desfecho, a história gira sobre o próprio eixo e quase volta à estaca zero, recurso estilístico de que Hoblit lança mão com destreza, mas que tanto reconquista os fãs já declarados desse gênero de produção como tem o condão de afastar ainda mais quem não se adapta a mudanças tão bruscas e numerosas num tempo que se torna exíguo demais.

Mais galã do que nunca, Richard Gere incorpora seu Martin Vail como muito poucas vezes foi capaz ao longo de uma trajetória profissional fartamente marcada por zênites e nadires, dos quais o público se lembra com igual entusiasmo. O roteiro de Ann Biderman e Steve Shagan não se estende sobre o que, de fato, motiva Vail a decidir se envolver num julgamento intrincado, que vai se extinguir por si mesmo e obedecer a sequência a que sempre se assiste em casos que tais: o réu, um homem pobre, solitário e ainda mais vulnerável a toda sorte de ataques, termina no corredor da morte, aguardando um tempo excessivamente longo ou cruelmente abreviado pelo irreversível último ato de sua sentença capital, ambos os cenários reproduções ricas dos tantos detalhes da miséria que vem a ser a existência para o homem. Esse homem, no caso, é Aaron Stampler, um acólito do arcebispo Rushman, de Stanley Anderson (1939-2018).

O personagem de Edward Norton se vê tragado pelo vendaval de repórteres, policiais, carcereiros, clérigos e políticos de grosso calibre, todos interessados em extrair do acusado pela morte de Rushman alguma vantagem. A solução deus ex machina de Diehl de se fazer com que os caminhos de Stampler e Vail se fundissem, sob a alegação simplória da tal vaidade do defensor, um dos mais competentes dos Estados Unidos, é mantida por Hoblit, o que faz deste um filme muito inferior a “Um Crime de Mestre” (2007), que levara à tela cerca de dez anos depois. Essa monotonia sofre um golpe oportuno com a entrada em cena de Laura Linney como Janet Venable, a ex-assistente e ex-amante de Vail, agora na Promotoria do estado e acusadora oficial do cliente do desafeto, e de Molly, a neuropsicóloga de uma quase irreconhecível Frances McDormand.

A derradeira guinada da narrativa, no último lance, vale o sobe e desce interminável de “As Duas Faces de um Crime”, colocando em xeque a máxima que reza que o mundo seja dos espertos. O mundo até pode ser dos espertos; o problema é sempre espertos mais espertos que os sabichões de costume.


Filme: As Duas Faces de um Crime
Direção: Gregory Hoblit
Ano: 1996
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.